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ETERNO RETORNO

       Prestemos atenção às prisões que criamos para nós mesmos em nome do amor. Quando esse sentimento vem acompanhado da sensação de dependência e vício, é hora de questionarmos sua validade.

 

ETERNO RETORNO

            (Baseada nas canções  “Mistaken Identity”, de Kim Carnes, e “My lover man”, de Bruce Springsteen)

Agora, são exatamente 3h30 da manhã. Chove muito nesta madrugada, e quase não acreditei quando o interfone tocou e o rapaz disse que você estava na portaria e queria subir. O aviso era desnecessário, já que você tem cópia da chave. Você diz que não queria me assustar, pois já é tarde para alguém chegar à casa de uma outra pessoa sem avisar…

Seus olhos tristes e cheios de lágrimas não lembram o homem forte e respeitado que me acostumei a ver em entrevistas de televisão e em páginas de revistas semanais. A solidão que você ostenta aí, sentado em meu sofá, cabeça baixa, cabelos grisalhos desgrenhados (ah! como eu adoro esses cabelos!), roupa amassada, em nada fazem lembrar o homem de 49 anos, marido de uma mulher respeitada e pai de dois belos filhos. Se eles o vissem, agora, não reconheceriam o pai que sempre foi um modelo de conduta e exemplo de homem vitorioso.

Deixe-me adivinhar: brigou de novo com ela, mantiveram a briga em segredo dos filhos (sim, pois “as crianças”, com mais de 20 anos cada um, não podem saber que o casamento dos pais está um horror há pelos menos uns dez anos!), você saiu batendo porta e, no meio da noite, lembrou-se de mim. Lembrou-se de vir até aqui, um lugar ao qual você não vinha havia pelos menos uns cinco meses, para tentar encontrar um pouco de paz e sossego. Veio pra cá para tentar fugir do mundo lá fora e poder conviver um pouco com uma parte sua que nem você mesmo consegue aceitar. Veio pra cá na tentativa de procurar um pouco de sanidade nesta vida que, aparentemente, é perfeita, recheada de prazeres, festas, amigos, reuniões, viagens e mulheres.

Mulheres! Quantas serão necessárias, meu Deus, para você saber que não gosta delas e que jamais gostou? Quantas serão necessárias para você tomar consciência de que não tem sido honesto com ninguém por toda a sua vida? Quantas mulheres você terá de conhecer e seduzir e presentear e comer para ficar claro que sempre voltará àquela sauna repleta de homens casados e respeitáveis, cidadãos pagadores de impostos à procura de rapazes e homens mais novos que lhe satisfaçam o desejo?

E fico me perguntando por que foi que, naquela noite fria de julho, há três anos, eu o convidei para sair de lá e vir aqui. Será que foi porque sua mulher e seus filhos viajaram e você estava só em casa? Ou terá sido porque eu queria você só pra mim, fora daquele lugar, sem olhos e mãos e bocas que me obrigassem a dividir você com outros? Por que foi que deixei você entrar na minha vida sabendo que você nunca ficaria inteiramente nela?

De novo, uma briga em casa. De novo, você aqui parecendo um menino solitário, no meio da noite, os olhos azuis cheios de água, me deixando desorientado e fora do prumo – como, aliás, você sempre me deixa cada vez em que aparece. Não fui claro quando disse o quanto você me faz sofrer sempre que o vejo? Já nãolhe falei, mais de mil vezes, que nunca o tive de maneira como eu sempre quis? E por que é que você sempre volta pra cá se represento a face oculta de tudo o que lhe assusta?

(Já lhe disse que pensei em mudar de telefone, de endereço, de cidade, de estado?)

As palavras que sempre escuto, desde a primeira vez em que fomos pra cama, estão mais do que marcadas no meu cérebro: “Ela não faz isso que você faz…”. Então, meu amigo, por que continuar com essa vitrine chamada “casamento”? Sua  cabeça baixa, seu rosto molhado dos pingos de chuva e sua camisa  semiaberta me dão um misto de sensações com  a quais nem eu consigo lidar. Tenho vontade de abraçá-lo e dizer que você pode sempre, sempre, voltar para mim e ficar comigo… mas sei que, amanhã, passada a tempestade, tudo o que terei de você aqui será o cheiro de seu perfume importado deixado na almofada que você está agarrando agora e uma janela para a qual eu irei enquanto porei alguma música que, invariavelmente, me fará lembrar de você.

Meus amigos dizem que nunca me viram assim por causa de ninguém – é que eles não o conhecem como eu conheço! É que eles nunca sentiram o seu abraço, seus braços fortes me dando carinho e proteção, seu peito da mesma cor de sua cabeça, seus olhos azuis que falam mais do que qualquer boca… e uma boca talhada para o beijo como uma lança talhada para ferir. Ah, meu amor, se você soubesse o estrago que faz cada vez que aparece e some sem previsão de volta! Se você soubesse o quanto me arrependo de tê-lo seguido dentro daquela sauna, depois me aproximado para, então, trazê-lo aqui… e se você soubesse o quanto guardo aquela data com carinho!

Somos um filme tão conhecido e tão único…

Não sei mais o que fazer com tudo isso que tenho nas mãos. Não sei mais o que fazer para prosseguir com minha vida – e me dou conta de que ela está cada vez mais entrelaçada com a sua. E isso não é bom. Estou cansado de amar você e de desejar você. Estou cansado de não conseguir pensar em mais ninguém. Estou cansado de esperar  que você venha para que eu possa transar com a pessoa que amo e não com um desconhecido a mais. Estou exausto de não deixar ninguém entrar porque, a qualquer momento, você pode retornar. Estou cansado de esperar notícias suas, ainda que sejam pelo whatsapp. Com sua indecisão, você tem perdido seu tempo e feito com que eu perca o meu. Mas a culpa é minha, claro que é minha!

Estou muito cansado de tudo…

Vou pegar-lhe uma toalha seca – tire sua roupa e tome um banho se quiser. Vou me deitar, pois me levanto muito cedo – daqui a pouco, pra falar a verdade. Não sei o que me causaria mais surpresa: acordar sem você ao meu lado ou com você ainda dormindo, abraçado a mim como sempre fez… também não sei se vou resistir e ficar ali, na minha cama, sem abraçá-lo e beijá-lo. Minha fraqueza é muito forte…

Como vê, tudo o que você me traz são incertezas. Nem mesmo sei se sou capaz de lhe dizer para nunca mais voltar.

Não sou!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

1 Comments

  1. Baltasar Macias Pereira disse:

    Esta crônica foi escrita de tal maneira que eu me senti agoniado como o personagem solteiro. Muito bem escrito e trama bem elaborada e mostrando os reais sentimentos em situações como a descrita.

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