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8 de junho, 2019
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O MAL DO BRASIL

Noite de sexta-feira. Como não dirijo, pego o ônibus ao sair da casa da minha mãe na Freguesia do Ó em direção ao centro, lugar em que moro há mais de 20 anos. Tomo o famoso Praça Ramos, desço normalmente no ponto final, perto da minha casa, uma caminhada simples de 10 minutos, perto da Igreja da Consolação e da (triste, porém aparentemente alegre) Praça Roosevelt. Uma questão de ponto de vista: jamais poderei considerar um lugar tão maltratado e tão sujo como bonito ou alegre – os beberrões adoram. A cada manhã, pode-se ver o monte de lixo que a “turminha descolada” deixa para os moradores da praça… Brasil civilizado!

Nesta noite de sexta, perto das 22h, o ônibus está cheio, para minha surpresa. Eu esperava que estivesse um pouco mais vazio, afinal estou no contrafluxo, em direção ao centro… mas são pessoas que vão para o trabalho noturno, pessoas que vão para a noite beber ou simplesmente estar com os amigos e até mesmo pessoas voltando para casa como eu estou neste momento.

O percurso é lento devido ao grande número de semáforos no trajeto – só na Avenida Francisco Matarazzo, perde-se muito tempo com o sinal vermelho e o trânsito intenso devido a dois shoppings vizinhos. Olho pela janela, uma garoa fina começa a cair, pessoas abrem seus guarda-chuvas ou esticam seus capuzes por cima da cabeça. Alguns apressam o passo, outros se deixam caminhar lentamente sem medo da água leve que cai sobre a noite paulistana.

Em pouco mais de meia hora, o ônibus vira no Largo do Arouche e pega a Vieira de Carvalho. Os bares estão apinhados de homens que, ou ficarão bebendo até tarde, ou apenas esperarão a hora de ir para uma das boates da região. (Lembro-me de que um amigo meu, já falecido, adorava esse roteiro nos anos 80: ir para um bar na Vieira bem antes de ir para o HS ou para a Corintho… “Esquentar os motores”, dizia ele. Eu ria… mas nunca gostei disso. Como detesto bebida alcoólica, sempre gostei de sair da minha casa e ir diretamente para a casa noturna que eu havia escolhido!)

O movimento da rua é intenso. Os bares estão apinhados de gente, homens que bebem e conversam animadamente nas calçadas, sem levarem em conta a garoa fina – uma garoa que é a cara da São Paulo antiga, aquela que meus avós e meus pais conheceram. A Terra da Garoa!

O semáforo da Vieira com a Praça da República fica vermelho. O ônibus para e é inevitável olhar para todos aqueles homens – homens de todas as idades, bonitos, não tão atraentes, baixos, altos, magros, gordos, malhados, carecas, cabeludos, de bermuda, de calças compridas, camisetas coloridas, outros mais discretos, alguns mais chamativos, outros mais “pintosos” como se diz na gíria gay e por aí afora. São tipos engraçados, tipos melancólicos, tipos tristes, alguns conversando em grupos, outros solitários com sua cerveja como se a latinha fosse toda a companhia que o rapaz terá durante a noite.

Eles falam e riem e paqueram-se uns aos outros, tornando a esquina, ali perto da Doceira Holandesa, uma amostra de como as boates da região ficarão na madrugada.

O ônibus está parado. O farol continua vermelho. Agora, somos poucos passageiros, já que estamos perto do ponto final. Estou sentado perto do cobrador, que estica o pescoço e grita para o motorista: “Olha só que pouca vergonha… não quer descer para se divertir?”. O motorista olha pelo retrovisor, ri e responde: “Tô fora, mano! Gosto disso, não!”.

O cobrador, não satisfeito, olha pra mim e dispara:

– É por isso que este país não vai pra frente… falta homem! O senhor acha que isso é certo? Pouca vergonha! Deviam estar com mulher, casados, fazendo filho… deviam ter vergonha na cara! Assim, esse Brasil não vai! Tenho cinco filhos e nenhum deles é veado…

Fico olhando para a cara dele e constato que esse homem não tem a mínima noção de que eu também poderia estar entre aqueles “sem vergonha” da calçada. Ironicamente, ele não suspeita de que não estou lá apenas porque não gosto de beber, mas que sou um daqueles “responsáveis pelo fato de o Brasil não ir pra frente”. Olho pela janela e penso imediatamente na corrupção, nos milhões de reais e dólares desviados por políticos e empresários salafrários; penso no dinheiro da educação, do transporte, da saúde (da saúde, meu Deus!), dos impostos, um dinheiro que nunca chega ao seu destino, embora tenhamos uma carga tributária de país de Primeiro Mundo; penso nos escândalos diários da política brasileira; penso no tal de Mensalão; na Lava Jato; nos engravatados de Brasília que posam de pais honestos e corretos – heterossexuais, claro, pois o caráter está associado à preferência sexual. Nos poucos segundos em que ouço o desabafo desse cobrador, tenho a certeza de que, como ele, muitos outros cidadãos deste país pensam assim e acham que o Brasil não vai pra frente porque há muitos “gays sem vergonha nas ruas”.

Sou um professor e fico não surpreso, mas triste pela metonímia desse homem simples e humilde, que está trabalhando numa noite de sexta quando poderia estar com a família. Um homem que é uma parte representante de um significativo contingente que pensa da mesma forma, que talvez vote nos mesmos corruptos, que talvez se deixe levar por um discurso populista de esquerda ou de direita (elas se confundem em sua essência) e cuja homofobia ele não tem vergonha de expressar.

Os males do Brasil não são a falta de ética, a falta de honestidade, a falta de transparência, a falta de tolerância, a falta de escolas e de hospitais bons para quem paga impostos. Os males do Brasil não são a violência, o analfabetismo, a desigualdade, as falcatruas de quem prometeu “consertar o país” quando era oposição e que fez o que fez quando foi governo… Os males do Brasil não são a impunidade e o descaso – Boate Kiss, Mariana e Brumadinho -, nem o desemprego, nem o salário dos professores nas escolas públicas. Não! Nada disso!

Os males do Brasil são os homens da Vieira de Carvalho com suas risadas espalhafatosas, suas roupas apertadas, seus brincos e tênis coloridos. Os males do Brasil estão representados por esses homens “sem vergonha”, por esses homens que se deitam com homens, quando deveriam se deitar com mulheres para, aí sim, construírem um país que “iria pra frente”.

Sei que seria inútil começar uma discussão ali. O farol fica verde, os carros começam a andar. Levanto do meu lugar e olho pela janela. A garoa parou, as ruas estão úmidas, as luzes iluminam as casas e a praça. O ônibus dá a volta pelo antigo Caetano de Campos e toma o rumo da Avenida São Luiz. Dou sinal e desço perto da Biblioteca Mário de Andrade. Caminho sozinho e pensativo pela rua.

Dentro do ônibus, fica o cobrador com seu remédio simples e óbvio para os problemas desta grande nação.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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