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A MAÇÃ

São 9h da manhã e acordo com o corpo cansado de ficar deitado. Abro os olhos, me esparramo na cama e olho o relógio do meu celular no criado-mudo. Todos já estão acordados há algum tempo – só eu ainda estou aqui.

Levanto-me devagar, tenho todo o tempo do mundo, meu primeiro dia de férias neste quente mês de fevereiro. O sol já bate forte na janela, escuto os filhos do vizinho brincando na calçada e vou diretamente pro banheiro. Uma mijada forte amolece meu pau, que eu ponho pra dentro do calção. Em seguida, visto minha camiseta e vou pra cozinha.

Ela está lá: na cintura, o avental bordado, cabelo preso, lavando a louça que as crianças deixaram antes de saírem pra escola. Somos só nós dois em casa. Ela me dá um sorriso e diz:

– Acordou, dorminhoco? Que sono, hein…

Eu apenas sorrio de volta, dou um beijo em seu rosto e digo que vou tomar banho antes de tomar café ou comer qualquer coisa. Não quero correria, não quero desespero. Já chega o que tenho de correr todos os dias quando estou trabalhando naquela oficina de pintura de carros: é pegar o ônibus, depois o metrô, chegar e encarar aqueles carros todos para pintar e sair de lá somente às 6h da tarde. Uma hora de almoço para ganhar só dois salários mínimos e fazer mágica para, com o dinheiro dos bolos que a esposa faz pra festas, poder pagar as contas no fim do mês.

Férias, essas foram choradas durante muito tempo. Só consegui agora, depois de três anos sem descanso e sem poder relaxar um pouco. Infelizmente, não consegui folga na época das férias escolares, então os quatro filhos tiveram que se contentar em ficar em casa, vendo TV, jogando bola na rua, essas coisas… Mesmo assim, estou feliz porque ficarei um mês, um mês!, sem pisar naquela oficina e sem o cheiro daquela tinta. Quero descansar, preciso descansar.

Saio do banho, barba feita, somente o bigode cheio, que a mulher não me deixa rapar. Olho-me no espelho, espalho a loção de barba pelo rosto, desodorante nas axilas, bermuda preta – presente de Natal da esposa – e camiseta azul. Tô novo!

Fico com uma fome danada: sento pra comer e ela me pergunta se quero pão. Quero pão, manteiga, café com leite, um suquinho de laranja e, para terminar, um pedaço de mamão e uma banana. Nossa! Parece que estou num hotel. Como é bom tomar café da manhã em casa, com sossego, tranquilidade, sem aquela correria de sempre.

Enquanto como, ela vai me relatando o que fez desde que acordou: chamou as crianças, deu café pra elas, levou as quatro pra escola aqui perto – 15 minutos de caminhada – passou no supermercado, comprou os ingredientes para um bolo que terá de fazer para o casamento da filha de uma vizinha e voltou pra casa, suando, pois o calor está infernal.

Eu não respondo, embora preste atenção. Somos casados há 15 anos, temos uma vida difícil, porém somos felizes na medida exata em que podemos ser. Não temos posses além dessa modesta casa de três quartos que acabamos de pagar no ano passado – com meu dinheiro e com o dinheirinho dela das encomendas de doces e bolos. Ela é a mãe dos meus filhos e eu a admiro pela força e garra com que educa os dois meninos e as duas meninas na minha ausência. Sempre chego em casa por volta das 8h da noite e participo pouco da vida deles durante a semana.

Elogio o café, digo que está delicioso, que quero mais e que gostaria de um pedacinho de bolo… se tiver. Sempre tem, eu sei: aqui, casa de doceira, doce tem. Ela me dá o prato com vários pedaços de bolo de coco, eu experimento um, dois, três e paro no quarto. Uma delícia! Observo enquanto ela limpa a pia, enxuga a louça e pega a batedeira que ganhou da mãe no aniversário do ano passado. Quando ela vai até a geladeira, sei que o ritual vai começar e, no fim do dia, um bolo lindo e gigante estará pronto. Ela resmunga que, dessa vez, pediram para que ela fizesse docinhos. A festa será daqui a três dias.

Ofereço ajuda, ela diz que não precisa. Sei que gosta de cozinhar sozinha e adora quando as crianças estão na escola para fazer tudo com calma e sem pressa. Termino de comer, estou satisfeito. Levanto-me da mesa e, enquanto ela revira a geladeira pegando tudo de que vai precisar, eu lavo a pouca louça que eu mesmo sujei. Ela me agradece e eu vou escovar meus dentes.

Calço meus tênis pretos, dou uma última arrumada no cabelo e saio do banheiro. Quando chego à cozinha novamente, ela está quebrando ovos e despejando-os na batedeira. Olha pra mim com um sorriso que logo se desfaz quando lhe digo:

– Vou sair. Agora, são 10h. Devo voltar lá pelas 2h da tarde, tá bom? Não me esperem para almoçar. Comam você e as crianças. Depois, esquento alguma coisa pra mim…

Ela abaixa a cabeça enquanto despeja os ovos e a manteiga na tigela da batedeira. Não me olha nos olhos, mostra-se ocupada, distraída com a massa que terá de terminar antes de botar no forno. Eu não consigo decifrar o que ela pode estar pensando ou sentindo. De repente, sinto medo de que ela me conheça bem mais do que eu desejaria. Não sei interpretar seu silêncio, não consigo saber o que ela quer dizer com sua linguagem corporal tão retraída, tão focada no bolo, tão distante de mim e, ao mesmo tempo, tão encolhida em si mesma.

O que esta mulher sabe sobre o homem com quem se casou? O que ela conhece sobre o homem que lhe deu quatro filhos e com quem ela divide a cama já há 15 anos? Passa por sua cabeça que eu não sou um marido exemplar, não sou um homem transparente que se deixa conhecer e cujos gostos e preferências ele teme confessar até para si mesmo? Como ela interpreta minha saída hoje e os dias em que chego tarde em casa dizendo que havia muito trabalho na oficina?

Sou um homem discreto? Será que consigo poupá-la do sofrimento por ter se casado com um homem que tem tanto a esconder? O silêncio da cozinha só é quebrado pelo maldito barulho do motor da batedeira de bolo e isso basta. A batedeira fala por ela, a batedeira diz que eu a deixe em paz com seus pensamentos, receitas, encomendas e afazeres domésticos. Ela me pede que eu entenda, sem dizer palavra, que nada pode fazer… mas saberá do que se trata realmente?

Acho que jamais terei coragem de contar-lhe o mundo paralelo em que vivo. Como dizer para sua esposa que somente ela não o satisfaz e que o problema nem seria arranjar uma outra mulher, mas sim um homem? Como fazê-la entender que preciso de corpo masculino, que preciso sentir um outro homem me acariciando, me beijando e me chupando no escuro de um cinema qualquer do centro da cidade? Como explicar que há um animal dentro de mim, muito mais forte do que eu, que me arrasta para onde quer?

Nesses 15 anos, tive ímpetos de deixar tudo às claras, mas a possibilidade de perder meus filhos fez com que eu não fosse adiante. Optei, como tantos outros, pelas escapadas e mentiras sempre que a ocasião se mostrava favorável. Escolhi deixar atos, beijos e orgasmos ocultos no escuro daqueles cinemas, menos para poupá-la do que pela falta de coragem em revelar aquilo de que (também) gosto.

Houve uma vez em que eu pensei que tudo estava perdido: ao entrar num cinema pornô, vi um sobrinho nosso – filho do irmão dela – que é abertamente gay. Acho que ele não chegou a me ver, mas fiquei muito preocupado naquele dia. Eram mais ou menos 7h da noite e, assim que eu o vi, saí de lá e vim pra casa. Foram dias tensos que se seguiram. Não tinha certeza de ter passado despercebido, e a possibilidade de o fulano abrir a boca me aterrorizava.

Ele não contou nada aparentemente. Pelo menos, não vi nenhuma alteração no comportamento dela para comigo. E a vida continuou. Claro que me tornei mais cuidadoso, mas não consegui parar de frequentar aquelas salas onde homens estão sempre à procura de outros para uma gozada rápida e anônima.

E hoje, no meu primeiro dia de férias, sinto um tesão maluco por pegar um rapaz e gozar muito…

Fico estudando a reação dela perto de mim na cozinha. Ela não levanta os olhos, não diz nada, continua em silêncio, apenas levanta a cabeça para limpar o suor que lhe umedece a testa. Daqui a pouco, o forno vai esquentar a casa ainda mais. Ela se mantém digna, séria, cumpre sua tarefa com determinação, assumiu um compromisso com a vizinha e quer honrar sua palavra. Ela é digna, uma doceira, dona de casa, mãe, esposa e muito correta com suas obrigações. Eu é que me sinto um trapo, eu é que me sinto podre por não conseguir ser sincero, nem totalmente feliz e satisfeito com o que tenho em casa. O desejo, contudo, é muito mais forte que minha consciência e meu amor por ela.

Dou-lhe um beijo no pescoço, encosto meu pau em sua coxa e digo que não demoro muito. Ela me retribui com um olhar distante, que eu não sei se é preocupação com o seu trabalho ou se é cansaço de ter de fingir que tudo está bem. Neste exato momento, me dou conta de que minha vida é uma grande incerteza e a possibilidade de ser o motivo da tristeza dela me aperta o peito e me angustia.

Saio pro quintal e enrolo a mangueira que estava espalhada; pego a bola dos meninos e arrumo com os skates num canto qualquer. Olho pra casa e vejo que preciso arranjar um tempo para pintá-la – e terá de ser nestas férias. Cumprimento o vizinho aposentado que rega suas flores e saio.

Ela corre até o portão e grita meu nome. Olho pra trás surpreso. Enquanto me arremessa uma maça, ela diz:

– Leve pra não sentir muita fome até você voltar.

Agarro a maçã vermelha, sorrio e guardo a fruta no bolso da bermuda. Sigo em frente sem olhar pra trás de novo. Simplesmente, porque não tenho coragem.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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