A MAÇÃ
27 de junho, 2019
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10 de julho, 2019
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MODERNIDADE

Chego à minha casa depois de um dia corrido, muito trabalho, trânsito para ir, trânsito infernal para voltar, engarrafamento, ônibus quebrado na principal via de acesso ao escritório, chuva torrencial que alaga tudo por causa dos bueiros entupidos – gente porca que joga tudo pela janela do carro!

No escritório, a secretária insinuante com uma saia cada vez mais curta. Está noiva de um rapaz bonitão do terceiro andar, mas é amante do nosso chefe lá no vigésimo primeiro, enquanto tenta me passar uma cantada perguntando se, hoje, eu tinha alguma coisa pra fazer, já que o noivo deveria ficar trabalhando até mais tarde. Tenho que tomar cuidado com a víbora, pois ela tem um acesso ao chefe que eu não tenho, isto é, a cama dos motéis da cidade. Após o orgasmo, não sei o que ela pode falar de mim pra ele.

O noivo bonitão é um conhecido meu, não é meu amigo. Frequentemente, vamos almoçar juntos porque temos amigos em comum, e ele está muito animado com o casamento que, me diz, será no ano que vem. Ainda assim, apesar de toda essa animação, a rodinha de engravatados barbudos sabe que ele está saindo com uma estagiária do oitavo andar. Menina bonita, simpática, de uns 20 anos. A fama dele é de ter pau grande…

A esposa de meu chefe gosta de mim, sabe que sou um funcionário leal ao seu marido e sempre que vai ao escritório conversa comigo e manda beijos para minha mãe. É uma mulher bonita, tem 55 anos, elegante e vistosa.  Quando visita o marido, chama a atenção pela classe e educação. A secretária, porém, tem 28 anos. Meu chefe tem 58. Burro velho gosta de capim novo! (Eu, no lugar dele, não trocaria a esposa classuda pela vagabundinha…)

Na minha seção, uma moça de seus 22 anos que, há mais ou menos um mês, me leva um bombom todos os dias. Ela ficou sabendo que gosto de chocolate. Resolveu investir para ver no que vai dar. Aceito os doces com toda as educação, já tentei dizer a ela que estou de dieta, que não posso abusar por ordens médicas etc., mas não adiantou nada. Vou comendo os bombons. Minha melhor amiga me chama de cara de pau.

Na semana passada, começou a trabalhar lá um rapaz indicado por alguém cujo nome no mundo do Direito é bastante respeitado. Ouvi dizer. Não fui atrás para saber com detalhes. Ele é bonito, tem seus 30 anos, usa barba (está na moda), calça do terno apertada nas coxas e bunda bem marcada. Já olhei com muita atenção por cima do monitor do meu computador. Minha melhor amiga do escritório já notou e eu a peguei rindo de mim. Fiquei vermelho, embora não tenhamos segredos um com o outro.

Um dos nossos motoboys continua insistindo em sair comigo. Já conversamos, mas o menino não dá trégua: vira e mexe, manda mensagens no whatsapp querendo “tomar um café depois do expediente”. Ele é gostosão, mora longe, é esforçado… e casado. Tem 24 anos, dois filhos, casou-se porque a mulher engravidou e o pai dela forçou o casamento. Ele me diz que gosta de homens também; num show de elegância e fineza, diz que quer me “experimentar” porque “morre de tesão por mim e chega a estourar a cueca quando me vê”. Sem comentários… não sei por quanto tempo vou resistir! Adoro essas tranqueiras…

No trânsito, sempre parado, o motorista do carro ao lado, distraído, nem nota que eu o olho, pois estamos os dois com os vidros dos carros abaixados. Disfarço, olho em volta, dou um jeito de olhar pra ele de novo e o sinal abre. O homem era uma delícia – camiseta branca, meio calvo, braços peludos e muito sério. Já foi e já sumiu na primeira à esquerda.  Eu sigo em frente.

Conecto o celular no carro e vou ouvindo “Holiday” da Madonna. Bem hetero! Dou risada sozinho. Deixo tocar, aumento o volume e esqueço do mundo! Chego ao meu prédio.

Subo no elevador com o bonitão do quinto andar. Ele está acompanhado da esposa e do filho de uns seis anos. Ela é antipática, desagradável, incapaz de um “boa noite”. Ele é mais civilizado, cumprimenta com sua voz grave, o paletó sempre pendurado no ombro seguro pelo dedo indicador. Ela não sabe e nunca poderá saber, mas o marido já esteve aqui em casa quando ela viajou com o filho para a casa da mãe. Nós nos encontramos no estacionamento do prédio, começamos a conversar, ele disse que estava sozinho, propus uma pizza com vinho e… pimba! O homem dormiu comigo e foi uma noite deliciosa.  A jararaca nem desconfia.

Quando abro a porta do meu apartamento, é como se eu saísse do mundo de carros, pessoas e problemas. Estou só, sem ninguém para me perturbar. Abro os janelas, deixo a brisa quente da noite entrar, tiro minha roupa e vou olhar minha secretária eletrônica. Recados de minha mãe reclamando que o cachorro da vizinha não a deixa ver suas novelas. Recado de um amigo que pede para que eu ligue para ele: “Não mandei mensagem de whats porque sei que você vai esquecer de me ligar. Vou esperar. Preciso falar com você hoje”. Já sei do que se trata: o namorado deu-lhe um pé na bunda e ele quer falar horas a fio sobre isso. Putz! Nem a pau, Juvenal! Não estou a fim de fazer terapia em ninguém…

Tomo um banho demorado. Que delícia! Ligo a TV no telejornal de uma emissora aberta qualquer e me sento ao computador para terminar um relatório que meu chefe quer para amanhã. Enquanto digito, vou ouvindo as notícias horríveis daqui e de fora: corrupção, violência, mentiras, falcatruas, escândalos, atentados, fofocas e sempre aquela materiazinha “engraçada” do fim do telejornal. São todos iguais!

Antes de começar a trabalhar, dou uma olhada nos e-mails: propagandas de agências de viagens, comunicados de festivais de música, sites de filmes pornôs, propostas de assinatura de revistas e alguma mensagens de amigos. Deleto o que tenho de deletar, respondo aos amigos, vejo as propagandas de filmes pornôs à venda e mergulho nesse universo. Um homem mais lindo que o outro. Onde posso comprá-los? Estão à venda por aí em algum shopping center de importados? 

Fico excitado e resolvo assistir a uma transa gostosa. O trabalho fica pra depois. Há dois meses, tirei do celular os aplicativos de “caça e sexo”. Ainda bem: essa é uma das típicas noites em que eu ia procurar alguém desconhecido para transar.

Enquanto vejo o filme no computador, na TV o telejornal acabou e entrou um daqueles “reality shows” medonhos em que os participantes cozinham, ficam pelados, escalam montanhas, comem carne crua, dormem com cobras e passam por todo tipo de humilhações… e dão ibope. Rio comigo mesmo do contraste entre a tela de meu computador e a tela de minha televisão. Seja como for, em ambos os casos as pessoas estão tentando ganhar uma grana… mas acho que a pornografia é menos enganosa.

O telefone celular toca: é aquele amigo querendo falar do namorado. Não atendo, pois nem jantei ainda. Vou até a cozinha e esquento três pedaços de pizza que sobraram do sábado. Abro uma cerveja e, depois, um pedaço de bolo de chocolate que minha mãe fez e me trouxe no fim de semana.

Na TV, o tal “reality show” continua.  Um horror! Já chega! Desligo e volto ao computador. Os dois homens se beijam demoradamente, enfiando as mãos pela camisa um do outro. Fazem o papel de lenhadores em uma cabana de madeira nas montanhas da Califórnia – clássico! Eu mesmo já vivi isso lá!

O filme não será suficiente. Bater uma não vai me deixar satisfeito. Hoje quero um pouco mais que isso.

São 8h30 da noite e pego meu celular. Encontro o motoboy na minha agenda de nomes. Penso duas vezes antes de fazer o que estou doido para fazer: mandar um whats. Mando.

“Tudo bem, rapaz? O que está fazendo? Está livre para vir aqui em casa?”.

         “Estou, claro! Agora?”

         “Sim”, respondo.

         ” Estou indo…Passa o endereço!”.

Ele não me fala da esposa e dos filhos. Eu não pergunto. Apenas ofereço a ele minha carência. Ele me traz a sua solidão.

 

**********

 

Em tempo: triste que tão poucos homossexuais conheçam a história de Stonewall, em Nova Iorque, um episódio que completou 50 anos em 28 de junho de 2019. É um erro pensar que sempre se pôde andar de mãos dadas com a pessoa de mesmo sexo pelas ruas ou que as “baladas” sempre foram liberadas ou ainda que sempre se respeitaram os “direitos dos gays”. Façamos, ainda que modestamente, uma homenagem àqueles corajosos que abriram caminho para tanta coisa que hoje presenciamos. Conhecer o que se passou naquele bar também é respeitar e homenagear os que levantaram a voz por um mundo melhor para os LGBTQ+. Viva Stonewall!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Baltasar Macias Pereira disse:

    Interessante o texto e as estórias que vão sendo criadas pelo Autor e eu fui imaginando os personagens em minha mente.

    Texto gostoso e fluído.

    Gostei do final sobre o trazer a Carência e a Solidão.

    Bela Homenagem ao Stonewall.

  2. Adorei o texto! Além de picante, já vivi algo parecido. Realmente uma pena onde a “nova safra” de homossexuais não conheçam a história de Stonewall.

  3. Fernando Padua disse:

    Envolvente. Tantas histórias acontecem em 24 horas, até o menos provável. Viver é estar vivo para as mais diversas situações. E ser um sujeito oculto, em alguns casos, é uma boa estratégia. Hoje a humanidade é imediatista e futurista. Esquecem ou nem sabem de quem um dia lutou para um mundo melhor para todos.

  4. Aurélio de Lima disse:

    A arquitetura da forma e do conteúdo do texto seduz o leitor por meio de dois movimentos que, embora sejam aqui explicitados, estão imbricados na narrativa: enquanto o primeiro encontra-se na habilidade para narrar a história, cujo ponto de partida decorre do olhar de um narrador que flagra, no cotidiano, de modo tão preciso, um movimento dialético não só constitutivo da natureza humana – solidão e carência (faces de uma mesma moeda?) -, mas também constituído por essa própria natureza; o segundo abriga-se na elevada sensibilidade (do autor-narrador; do narrador-autor) para conduzir, de forma prazerosa, o leitor a uma reflexão acerca da sua própria condição existencial, a qual não se conforma a rótulos, pois solidão e carência, por exemplo, estão à disposição de todos nós. Como lidaremos com elas? Não há resposta precisa, porém a arte sempre será o caminho para nós entendermo-nos a nós mesmos e ao outro. Como arte que é, essa crônica abre mais um caminho para uma possível compreensão.

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