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ENCONTRO

         A noite pode trazer muitas surpresas – umas muito boas, outras nem tanto. Dizem que os destinos das pessoas estão mais entrelaçados do que se possa imaginar…

 

ENCONTRO

O segurança da boate é truculento, mal-humorado, detesta aquele trabalho, e ficar parado ali, organizando a fila de todos aqueles “homens de mãos dadas com homens”, era a última coisa que ele gostaria de ter de fazer na vida. A madrugada começa, 1h da manhã e a fila é enorme. Esse é o seu primeiro fim de semana no novo emprego. E ele olha com ódio aquela fila, um mais esquisito que o outro – cabelos coloridos, alguns de brincos, a maioria tatuada, calças apertadas, camisetas que parecem querer explodir nos corpos bombados. Eles conversam, falam alto, sorriem, trocam beijos demorados enquanto, lá dentro, o ingresso é controlado por uma figura ainda mais estranha: um homem de peruca, vestido curto, maquiagem pesada, peruca loira, muitas pulseiras e anéis, uma sandália com um salto altíssimo e uma voz muito grossa. Que mundo é este em que ele veio parar? Como é novo no emprego, foi posto ali na porta para controlar o fluxo, tomando garoa na cara, molhando os sapatos novos, o uniforme novo, molhando o cabelo que nem secou direito depois do banho que ele tomou em casa enquanto conversava com a esposa:

– A boate é fina, grande, me disseram que está na moda. Fui indicado pelo Ariovaldo, aquele que trabalhava comigo lá na montadora e que foi demitido comigo e com mais 30. Diz ele que a gente tem pouco trabalho, que o povo lá não é de encrenca e coisa e tal. Eu aceitei porque não posso ficar parado e, enquanto não acho coisa melhor, vou me virando com isso mesmo. O ruim é passar a noite inteira de pé, olhando, observando enquanto todo o mundo se diverte. E você sabe o que eu penso desses maricas, né? Parece uma praga: aonde você vai, tem um… ou muitos! É o fim do mundo!

A esposa teve um mau pressentimento, mas nada falou. Enquanto ele deixava a água correr pelo corpo forte, ela, do lado de fora do box, dizia que ele tinha mais era que agradecer ao céus por ter encontrado trabalho neste país falido. O filho da dona Santa, vizinha da casa 302, estava parado havia mais de cinco meses. Menino esforçado, recém saído do exército, não conseguia emprego de jeito nenhum. E havia outros tantos casos na mesma rua, gente conhecida de muitos anos que não conseguia uma vaga nem pra trabalhar de feirante…

Ele se arrumou em frente ao espelho. Gostou de si mesmo com o terno preto que havia recebido da gerência da boate. Primeiro, a camisa branca; depois, a gravata preta e, por fim, o paletó. Escovou os dentes, passou o gel pelo cabelo, lavou as mãos e alisou a barba espessa que lhe cobria o rosto. Despediu-se da mulher com um beijo na testa e recomendou que não ficasse esperando por ele, pois não tinha hora pra chegar em casa. Eram 20h quando saiu pelo portão em direção à estação do metrô que o levaria até a boate. Deveria estar lá às 21h. “Pra que tanta antecedência?” – pensou consigo.

Agora, estava na porta, mais de 1h da manhã, e gente chegando que não acabava mais. Caberiam todos lá dentro? E cada carrão! Ele observava aquele mundo que não era o seu, aquele escândalo de homens beijando homens, homens abraçando homens, homens que queriam homens. Diante de tudo aquilo, arranjar um outro emprego era mais do que urgente! Não suportaria ficar ali durante muito tempo, durante muitos fins de semana, testemunhando aquela multidão de gente que o ofendia. Era isso: sentia-se ofendido por tudo aquilo. E o motivo, era melhor nem lembrar…

Por momentos, sua cabeça voltou à montadora de automóveis na qual trabalhou por mais de 15 anos. Os amigos, a camaradagem, os horários “decentes” de trabalho, o salário no fim do mês, as férias remuneradas, o 13º no fim do ano, as horas extras… tudo isso, agora, no passado. Ganharia por fim de semana trabalhado. E não era muito. Trabalharia agora no quê? Aos 49 anos, controlando fila de barbudos beijando barbudos, sua cara séria impondo respeito na porta de uma boate gay! Isso era vida? Tinha de sair dali o mais rapidamente possível…

Não demorou muito até que começou a ouvir as primeiras cantadas. Eram sorrisos, assovios, “boas-noites” com cinismo, sorrisinhos, encaradas… aquilo tudo só foi piorando o seu humor. Teve de se conter para não pegar um pelo colarinho; teve de se segurar para não dar um murro na cara de um outro marmanjo… E o relógio parecia andar pra trás. Aquela seria uma noite muito, muito longa. Procurava não olhar no relógio para não se irritar ainda mais. Quem sabe o tempo passasse mais depressa se ele não ficasse preocupado com isso!

Pensou consigo mesmo que, dos males, o menor: pelo menos não precisava ficar lá dentro, vendo aquele show de horrores de homem beijando homem, uma música medonha de tão alta, uma escuridão insuportável e gente bêbada ou drogada criando problema. Isso: ali na portaria, pelo menos, estava tomando ar fresco, uma garoa fina, não precisava ficar lá dentro com aquele barulho infernal. Dali a pouco, o dia nasceria, aqueles boiolas todos iriam embora e ele poderia voltar pra casa e curtir o seu domingo em paz. Absorto que estava em seus pensamentos, não viu quando um carro preto, importado, parou bem perto da entrada da boate, bem perto de onde ele estava. Quando se deu conta, apenas viu o motorista sair e deixar a chave com o manobrista. O homem tinha uns 65 anos – calça apertada, uma barriga horrível, camisa estampada aberta, revelando um peito peludo e grisalho, pouco cabelo na cabeça, botas marrons, um cinto com uma fivela enorme e ridícula. O segurança percebeu, contudo, que aquele era um velho de posses: ninguém possuía um carro daquele se não tivesse muito, muito dinheiro. E, de carros, ele entendia. Viu o velho dar uma gorjeta de R$200 para o manobrista e pensou: “Opa, assim, vale a pena trabalhar aqui… Quem será essa bicha velha e rica?”.

Não teve muito tempo para ficar pensando. A outra porta se abriu e do carro saiu um rapaz de seus 23 anos. Bonito, cabelo curto, camiseta preta, calça preta, relógio da mesma cor, uma aliança de prata no dedo anelar. Ele acenou pra outros na fila, foi correspondido. Esperou que o velho pagasse o manobrista e deu-lhe um demorado beijo na boca, ali, na frente de todos. Foram pra fila, pois detestavam entrar na frente dos outros, embora fossem figuras conhecidas na casa e pudessem entrar sem esperar. Esperavam. Quando chegaram na porta, o rapaz olhou para o segurança e disse em seguida para o velho:

– Ih, olha quem está aqui! O machão que me pôs no mundo! Tudo bem, bofe?

O velho esboçou um sorriso irônico e perguntou: – Foi esse que te enxotou de casa? Foi esse que lhe deu uma surra de cinta e disse que tinha nojo de você?

– Pois é, disse o rapaz. Está trabalhando aqui? Não é possível! Vê se trata bem dos meus amigos, hein… Aqui não dá pra ser troglodita…

Quando o velho e o rapaz entraram, o segurança ainda pôde ouvir os risos de alguns que ali estavam. Sentiu a noite ficar mais escura do que o normal; a chuva fria cortava seu rosto e o coração parou de bater por instantes. Um suor escorreu por sua face, molhou sua camisa, ensopou o seu peito, embora nada disso pudesse ser notado por ninguém. Teve a impressão de que envelhecera mil anos naqueles dois últimos minutos!

Na madrugada, sob a garoa, a fila era cada vez maior.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Ricardo Leme Szulc disse:

    Parabéns pelo texto sensacional, querido amigo! Forte abraço cheio de saudades!

  2. Baltasar Pereira disse:

    Que texto intrigante. Não conseguia parar de ler para chegar logo o final. Fiquei surpreso com o desfecho. Não irei mentir ,fiquei com pena do Segurança, embora tenha tratado o filho muito mal no passado. Belo Texto.🤗🤗👏👏

  3. Clarice keri disse:

    Texto maravilhoso com detalhes que, sem esforço, nos coloca na boate querendo conhecer tudo e todos, adorei, valeu.

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