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CENA EM UM RESTAURANTE

       Não existe amor sem respeito, assim como só podemos amar aqueles a quem admiramos. Passar sobre as diferenças e aceitar o outro são os grandes desafios que se impõem.

        Acabamos de chegar a este restaurante para mais um jantar. Um restaurante que frequento desde minha infância. Nos últimos anos, minhas vindas aqui têm sido mais raras, pois me mudei para o Rio de Janeiro quando me casei e tenho vindo pouco a São Paulo. Desta vez, deixamos nossos filhos de seis e quatro anos no Rio, com os pais de minha mulher, e viemos só os dois visitar minha família. Viagem rápida, de três dias apenas.

        São 7h15 da noite de sexta-feira, e acabamos chegando antes de nossos convidados para o jantar de hoje. Nós nos sentamos e os mesmos garçons de 20, 25 anos passados nos servem com a mesma cordialidade e atenção de sempre. Por  coisas assim, penso que nunca poderei deixar de amar esta cidade, embora tenha constituído família no Rio. Tantas vezes vim a este restaurante que seria impossível descrever minha vida sem mencioná-lo.

        A TV está ligada, sem volume, muitas mesas ainda vazias, mas logo ficarão repletas de gente comendo, bebendo, falando, celebrando… e, enquanto nossa companhia não chega, minha esposa liga para os pais, perguntando sobre os meninos. Tudo bem por lá, graças a Deus. Da próxima vez, temos de trazê-los conosco. Dez minutos depois, nossos convidados adentram o restaurante.

        Avisto aqueles dois senhores distintos, elegantes, cabelos grisalhos; um deles usa óculos; os dois estão de paletós escuros por causa da noite um tanto fria do começo de agosto. Os dois são respeitadíssimos professores cuja reputação foi construída em mais de 25 anos de carreira acadêmica. Doutores em suas respectivas especialidades, os dois nasceram para o magistério, e a sala de aula é o seu lugar.

        Um deles é meu pai – um homem bonito, 58 anos, barba bem feita, braços que revelam pelos assim que ele tira o paletó. Um homem descendente de italianos e, como tal, de gestos amplos, fala clara e sorriso mais largo ainda, emoldurando os olhos verdes e penetrantes. Sempre fomos muito amigos, e o que sei da vida me foi ensinado por ele, já que minha mãe, como se verá adiante, acabou por se omitir e se revoltar contra a vida em sociedade. Meu pai é meu orgulho, e o abraço que lhe dou é sincero e cheio de saudade, pois não nos encontramos há seis meses.

        O outro não é menos charmoso – 55 anos, gestos de quem dá as boas vindas a quem dele se aproxima, sorriso simpático e espontâneo, cabelo ficando branco nas têmporas, dentes muito brancos e uma simpatia contagiante. É o tipo de pessoa que, quando fala, atrai a atenção de quem estiver por perto e seu magnetismo é natural e bastante forte. Sabe se expressar muito bem e nos trata, a mim e à minha mulher, com uma cordialidade própria de quem teve uma educação diferenciada na juventude. Fico imaginando esse professor em ação diante de 30 ou 40 alunos e tenho certeza de que sua aula é inesquecível – seja por seu carisma, seja pela bagagem cultural que sempre mostrou ter.

        Ele e meu pai estão juntos há 20 anos. 20 anos! Já faz tanto tempo assim que este homem faz parte de nossa história? Já faz tanto tempo assim que meu pai encontrou o verdadeiro amor de sua vida? Fiquei adulto, casei-me, sou pai e nem me dei conta de como os anos se passaram para mim e para esses dois homens sentados à minha frente neste restaurante. E, subitamente, me dou conta de que nunca prestei muita atenção à felicidade que os dois mostram um ao lado do outro; percebo que nunca me conscientizei da cumplicidade que os une e de como um precisa realmente do outro para se sentir feliz.

        No meu mundo de heterossexual, nunca parei para prestar atenção ao casamento desses dois homens tão importantes para mim – um deles, por ser meu pai e meu ídolo, um homem que amo e admiro e que guardarei sempre no meu coração. O outro, um homem que aprendi a amar, ou porque faz meu pai feliz, ou porque ele próprio é uma pessoa digna e admirável também. Poucas vezes me peguei pensando em meu pai e em seu parceiro de tantos anos e na vida que construíram juntos – uma vida tão ou mais bonita do que muitos casais convencionais que minha mulher e eu conhecemos. Diante deles, fico desejando que eu e ela consigamos construir um relacionamento tão sólido quanto o que construíram ao longo desses 20 anos.

        Por momentos, mergulho em meus pensamentos e fico olhando fixamente para meu pai enquanto ele conversa com minha esposa e pergunta pelos netinhos. Esse homem grisalho e charmoso, de quase 1,90m de altura, sabe o que os livros ensinam e o que a vida impõe – uma imposição a que chamamos de destino ou fortuna. Nunca senti vergonha de meu pai, embora minha mãe não se conformasse com a separação e menos ainda com o motivo do fim do casamento deles. Ficaram casados durante dez anos e, quando eu tinha oito, meu pai descobriu que não conseguiria continuar naquele relacionamento que o tornava extremamente infeliz.

        Minha mãe, inconformada com a separação, insistiu para que meu pai revelasse o motivo do divórcio e, quando ele assim o fez, ela nunca mais quis vê-lo ou dirigir-lhe a palavra… menos ainda participar de sua vida. Em meio a tudo aquilo, confesso que fiquei à procura de um vilão que, por algum tempo, em minha cabeça, acabou sendo meu pai, lógico. Quando tomei consciência das coisas, quando conheci melhor o mundo, não pude continuar cúmplice de minha mãe, que o condenava por ter sido honesto e por querer ser feliz, libertando-a também de um casamento sem sentido. Por outro lado, claro que levei um tempo para aceitá-lo e aceitar a nova vida que ele começava a levar.

        A convivência é sempre uma boa sepultura para todos os preconceitos, e conviver com meu pai e seu namorado ensinaram-me mais do que qualquer escola que frequentei em minha vida. Observo em silêncio esses dois homens bonitos do outro lado da mesa e, enquanto eles pronunciam palavras que não escuto, constato o amor que sinto pelos dois, embora não ame menos minha mãe. Com todos os problemas que ele enfrentou – de ordem legal e diante das pessoas -, meu pai nunca se ausentou de minha vida, mesmo tendo sido expulso do convívio com minha mãe e seus familiares. Lembro-me com clareza de todas as situações difíceis por que ele passou com a família dela: desprezo, ofensas, impropérios e, finalmente, banimento completo.

        Ele e seu companheiro conheceram-se quatro anos depois de meu pai ter saído de casa. Hoje, não consigo  imaginar um sem o outro. Não consigo imaginá-los separados e, quando sorriem e nos contam sua última viagem à Europa, têm o poder de nos transportar para dentro de sua felicidade. Convencem-nos, entre uma garrafa de vinho e outra, que precisamos fazer essa viagem juntos, os quatro (“Quem sabe vocês também levem os meninos!”). Dizem que gostariam de nos mostrar alguns restaurantes que descobriram no Velho Mundo, bem como algumas cidadezinhas medievais perdidas no interior da Alemanha, da Itália e da Suíça. Concordamos que devemos mesmo viajar juntos no ano que vem. E minha mulher, que os adora, vai tecendo planos, como se fôssemos  tomar o avião no dia seguinte.

        Nossa conversa fica ainda mais animada, só interrompida pelo garçom que nos pergunta se já escolhemos o que comer. Pedimos nossos pratos e, claro, mais uma garrafa de vinho. Não posso deixar de notar quando meu pai pega, com força, a mão do outro sobre a mesa e, despreocupadamente, elogia o último trabalho publicado que seu parceiro escreveu. Noto quanto orgulho meu pai tem do homem que ele ama – e constato que a felicidade se resume nisso. Quero que meus filhos e minha esposa sintam isso por mim também!

        Conversamos sobre tudo – cinema, teatro, música – e o jantar transcorre em harmonia para estas quatro pessoas que nem sempre se encontram. Rimos com os casos de sala de aula contados por ambos – professores sempre, sempre têm histórias sobre aulas e alunos… e com eles não é diferente.

        Quando terminamos, eles fazem questão de nos levar ao hotel em que estamos hospedados. Minha esposa e eu concordamos que, para não desagradar ninguém e não despertar o ciúme de nenhuma parte, o ideal é não ficarmos na casa de familiares – nem do meu pai, nem de minha mãe. (Não contamos a ela sobre esse jantar, mas é uma mulher inteligente e sabe que não voltaríamos ao Rio sem ver meu pai e seu companheiro, porém não pergunta nada. Tudo se sabe, e nada se fala. Melhor assim – para que magoá-la?)

        No caminho até o estacionamento, meu pai me puxa de lado e pergunta por ela e fica tranquilo quando digo que tudo está bem. Seguimos em silêncio na madrugada que começa, sob uma fina garoa. Atrás de nós, minha esposa conversa com o outro professor.

        A mão pesada de meu pai sobre meu ombro é, de alguma forma, reconfortante, e eu me sinto protegido. Preciso vir a São Paulo mais vezes, preciso conviver mais com ele – e com minha mãe também!

        Na porta do hotel, minha mulher e eu agradecemos pela noite deliciosa e os convidamos a nos ver no Rio. Eles dizem que irão nas férias do fim do ano. Mandam beijos às crianças e nos desejam uma boa viagem. Ao dar o último abraço em meu pai, sussurro em seu ouvido que eu o amo.

        Ele não diz nada, mas seu beijo em minha face também é uma declaração de amor. E isso é muito bom.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

7 Comments

  1. Lindo texto! Lindo o amor entre os dois professores e mais, o amor do casal hétero ao casal de professores.

  2. Verônica disse:

    Amei! Um ponto de vista amoroso de uma situação tão comum, conheço tantos homens frustrados.

  3. delço Goreti Gialorenço disse:

    Lendo seus textos, me vem uma saudade de um jantar naquele restaurante próxima de sua casa!

  4. Clarice keri disse:

    Como sempre, muito bem escrita, história ótima para render uma novela.

  5. Bernadete disse:

    Muito lindo!!❤️❤️

  6. Baltasar Pereira disse:

    Lindo texto. Como sempre minha imaginação corre em minha mente imaginando os personagens deste texto bem escrito e não paro de ler até chegar ao final. Histórias ricas com “H” maiúsculo e verdadeiras que ocorrem no Mundo inteiro e depende de cada pessoa como irá escrever sua História. 🤗🤗👏👏

  7. Régis Linhares Paulo disse:

    Parabéns pelo texto!
    Conforme citou o Delço, fui nostágico ao fazer a leitura.
    Torço por uma sociedade salutar conforme a história relatada na crônica.

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