CENA EM UM RESTAURANTE
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O PAGAMENTO

A metrópole traz milhões de histórias – algumas felizes, outras tristes e algumas bem inusitadas. Como você classificaria a esta?

 

O PAGAMENTO

O cheiro de bife acebolado podia ser sentido a uma longa distância do bar naquele meio-dia de sol a pino. Hordas de pessoas saíam de todo lugar para o almoço da segunda-feira. A Praça da República repleta de pedestres, camelôs, ônibus, carros, alguns policiais e até mesmo desocupados que, àquela hora, vagavam sob o sol quente. Gente de toda cor, vestida de panos diversos e coloridos e com ocupações variadas compunham o cenário caótico e típico de grandes centros urbanos. Sobre a cabeça de todos eles, o aroma que saía dos restaurantes e revelava os mais saborosos temperos.

Garçons apressados ajeitavam toalhas de papel e talheres sobre as mesas; cadeiras eram arrumadas e limpas. As pessoas começavam a chegar, o vozerio tomava conta do ambiente e gritos eram ouvidos em direção aos cozinheiros segundo os pedidos dos clientes. Eram balconistas, bancários, contadores, despachantes, secretárias, executivos, motoboys, toda espécie de gente que tinha uma hora ou pouco mais para matar a fome antes do período da tarde. Com uma velocidade espantosa, os restaurantes e as lanchonetes eram invadidos, e o inferno duraria até aproximadamente as 14h.

O barulho das conversas misturava-se ao barulho vindo das cozinhas, onde pratos eram lavados com rapidez, e garfos e colheres eram mergulhados em grandes tinas de detergente. Nas caixas registradoras, homens gordos com canetas nas orelhas somavam e subtraíam sem parar, num ritual diário e repetitivo… “Nota fiscal paulista?”, “Débito ou crédito?”.

Era o cheiro do bife acebolado, contudo, o que mais torturava Nelson!

O rapaz de 18 anos saíra de casa cedo, no bairro humilde da zona leste da cidade, dizendo à mãe que conseguira mais um apartamento para pintar com um colega. A mãe, senhora religiosa e muito doce com o caçula dos seis filhos, sorriu quando soube do fato e lembrou-se de que tinha de passar na Sé para acender uma vela em agradecimento, porque esse era um trabalho que surgia após três meses de total jejum.

Nelson vagava pela cidade desde as 8h da manhã. Sentava-se de vez em quando na Praça da República ou nos bancos do Largo do Arouche. Mentira à mãe que o proprietário do apartamento lhe daria almoço e recusou a marmita que ela quis lhe preparar. Uma vez na cidade, ele olhava, observava, tentava se fazer notar dentro da calça apertada e da camiseta vermelha, justa, no corpo musculoso.

Já fazia quatro horas que perambulava por aquelas ruas – Aurora, Andradas, Marquês de São Vicente, Consolação. São Luiz, Barão de Itapetininga, 24 de Maio, 7 de Abril… o estômago doía como se tivesse levado um soco, a boca cheia de saliva com o aroma que chegava dos restaurantes, a tontura causada pela fome, a fraqueza e as pernas moles de alguém que não punha nada na boca desde as 8h da noite do dia anterior. No bolso, só o dinheiro do metrô de volta. Nelson foi sentindo o corpo pesado, o calor intenso. Foi se arrastando sobre as pernas que insistiam em caminhar rua após rua, no asfalto que parecia derreter sob o sol tórrido daquele começo de dezembro.

Sentou-se novamente no Largo do Arouche, próximo às bancas de flores que enfeitavam a praça e que, naquele começo de tarde,  estavam repletas de pessoas admirando a beleza de tulipas, rosas vermelhas, rosas brancas, rosas amarelas, além de cravos, margaridas e violetas. Quase pegou no sono sobre o banco sujo – um sono que seria um bálsamo naquela condições em que se encontrava – cansado e com muita fome!

Estava com os braços abertos sobre o encosto  do banco quando observou um carro bonito passar e diminuir a velocidade. Pensou que fosse por causa do semáforo do próprio Arouche com a Vieira de Carvalho. Conseguiu ver o motorista – um homem grisalho, de terno e gravata, atrás de óculos escuros. Olhou o carro até perdê-lo de vista. Não deixou de notar que, dois minutos depois, o mesmo veículo passava devagar pelo mesmo caminho – e a mesma cena de novo. Contou duas, contou três, contou quatro vezes. Na quinta vez em que o carro passou, Nelson resolveu ficar de pé na calçada, reunindo o pouco de suas  forças ainda restantes.

Não se surpreendeu quando o carro parou no meio-fio e o motorista baixou o vidro. Com um largo sorriso, o homem elegantemente vestido tirou os óculos e exibiu os olhos azuis. Esticando-se para a janela em que Nelson já estava debruçado, falou:

– Tudo bem, rapaz? Que calor! Preciso ir até um hotel na avenida Rebouças… não sou daqui e acho que estou meio perdido. Você pode me ajudar? Quer uma carona para algum lugar?

Nelson esperou o outro destravar a porta e entrou no carro. No caminho, subindo a rua da Consolação, foram falando amenidades e trocando algumas carícias discretas para o horário e para o trânsito, pois os ônibus passavam e os motoristas podiam ver, lá do alto, o que acontecia dentro do carro.

Quando chegaram ao hotel, o homem disse o seu nome, fez o “check-in” e apresentou Nelson como seu amigo, que subiria “por algumas horas, mas que não era hóspede, não”. Ainda meio tonto e fraco com a fome que se intensificara, Nelson observou dois carregadores retirarem do carro as malas do homem que o levara até lá. Tomaram o elevador até o 17º andar e esperaram os carregadores saírem.

Meio sem jeito, Nelson sentou-se na poltrona a um canto do quarto, enquanto o homem tirava o paletó, soltava a gravata desamarrava os sapatos, tirava as meias e, só de cueca, propunha um banho “antes de qualquer coisa”. O rapaz de 18 anos examinou aquele corpo de cima a baixo – corpo bonito para um homem  com mais de 40 anos; peludo, nenhuma barriga, coxas grossas, braços fortes (provavelmente por causa de natação ou tênis) e um pau que já se fazia notar sob a cueca preta.

O homem seminu aproximou-se e tirou a camisa de Nelson – começou a acariciá-lo e a beijá-lo e lembrou-se de perguntar quanto aquele rapaz musculoso e bonito cobrava por uma tarde de muito sexo. “Estou com um tesão danado, cara!”.

Nelson só teve uma resposta, que lhe saiu instintivamente, sem raciocinar ou refletir sobre o que estava falando. Com uma tontura insuportável e prestes a desmaiar, pediu:

– Um prato de comida, cara. Só preciso de um prato de comida!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Verônica disse:

    Adorei!

  2. delço Goreti Gialorenço disse:

    Deu pra ver o centro de São Paulo, apesar de que faz tempo que não vou por esses lados!

  3. Clarice keri disse:

    Fiquei com dó do rapaz mas, ele foi sincero, o q o torna mais atraente, adorei

  4. Régis Linhares Paulo disse:

    Muito bom Vítor!
    Esta crônica, além bonita, ainda é a realidade de muito gente por aí.
    Me deixou ansioso por uma possível continuação, mesmo porque tenho um primo com história semelhante 😘

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