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A MÃE

“Negação e fuga estão sempre de mãos dadas… podemos negar e fugir por um tempo, mas não o tempo todo”.

A MÃE

 

Para Bette Davis

– O senhor tem um caso com meu filho?

A pergunta da velha, feita assim, sem rodeios, surpreendeu o professor e o revoltou ao mesmo tempo. Quem era aquela mulher para encostá-lo na parede com uma pergunta tão mordaz e acachapante? Quem ela pensava que era, do alto dos seus 70 anos, cabelos tingidos de loiro, blusa vermelha contrastando com o colar de pedras pretas, um relógio miúdo dourado no punho, saia branca, braços finos e uma elegante sandália de verão? Que juízo ela fazia do homem que estava dentro de sua casa para ensinar inglês ao filho caçula daquela senhora? A pergunta pegou-o, sim, de surpresa – além de lhe ter provocado ódio.

Controlou-se, lançou um olhar frio à velha e contou até mil… ou até dois mil. Não saberia dizer por quanto tempo ficou em silêncio, ruminando as palavras que bateram no seu tímpano com muita força. Talvez fosse melhor não reagir como queria e devia. Talvez fosse melhor, mais uma vez, pensar na esposa grávida de quatro meses, uma jovem de 16 anos, com quem ele se casara no mês anterior exatamente por causa do bebê que estava chegando. Mais uma vez, numa fração de segundos, reconstituiu sua vida recente, desde o momento em que conheceu a garota até o primeiro beijo, a primeira transa e a notícia terrível para os dois: gravidez! Desse dia em diante, sua vida nunca mais foi a mesma.

Teve que, imediatamente, arranjar um emprego e assumir responsabilidades descabidas para um rapaz de apenas 18 anos. Transferiu o curso matutino  da faculdade – Administração – para o período da noite a fim de começar a trabalhar. O pai da jovem era amigo de seu pai, e os dois sogros não viam qualquer possibilidade de entendimento que não fosse o casamento dos dois jovens namorados. O problema era que as duas famílias, pobres, não possuíam recursos para uma nova vida, e o sustento da moça e do bebê caberiam ao jovem pai. Assim, nosso professor, que não era professor, ministrava aulas particulares de inglês nas residências dos alunos.Agora, ele se via nessa situação inusitada com a mãe de um deles. E seu primeiro desejo era mandar a velha às favas, pra não dizer coisa pior!

-Digo isso, senhor professor, porque uma mãe sempre sabe o filho que tem. O rapaz está com 15 anos, meu marido e eu resolvemos adotá-lo quando meus outros quatro filhos naturais já estavam crescidos e penso que foi uma ótima decisão – para nós e para ele. Esse menino trouxe alegria para minha casa e sou muito feliz por ter essa nova chance de ser mãe de um jovem, embora eu tenha idade para ser avó dele. Não importa: adotiva ou biológica, uma mãe desenvolve um instinto ou uma espécie de sexto sentido com relação àqueles que ela deixa entrar em seu coração. Meu filho, obviamente, está apaixonado pelo senhor -e quero saber se é correspondido.

O professor perdeu a cor e engoliu em seco. Sua vontade, agora mais do que nunca, era fazer aquela mulher engolir a sua classe, seu dinheiro, suas joias, sua pose e sua soberba. Queria sair dali e não olhar pra trás, nunca mais falar com aquele rapaz que, sim, olhava para seu professor de maneira diferente de todos os outros 20 alunos que ele possuía. Eram alunos espalhados pela cidade, às vezes em bairros de difícil acesso, cujo percurso tomava-lhe o dia todo. E sempre no mesmo ritual: chegar à casa do aluno, ser recebido pela empregada, aguardar na sala e, depois, retirar-se para um aposento qualquer e iniciar o desprazer que era dar aula de inglês àqueles jovens arrogantes em sua maioria.

O que sabia aquela mulher sobre o ocorrido entre o seu filho e o professor nas aulas? Ela sabia que o rapaz mal prestava atenção às lições? Teria adivinhado que o garoto fazia perguntas insinuantes?

– Professor, como se diz em inglês “você é gostoso”? E como eu posso dizer “Sonhei com você ontem”?

O jovem professor enrubescia, ensinava as frases e mudava de assunto, desconfortável que ficava, porque ele, também, já havia notado algo no ar nas primeiras aulas. Será que aquela mulher tinha dúvidas ou simplesmente afirmava quando interrogava e suas perguntas eram só a retórica própria dos que, com a vida, aprenderam a analisar as pessoas?

Houve um dia, contudo, em que o jovem professor de inglês precisou cancelar as outras quatro aulas que daria após visitar aquela casa. Seu aluno conseguiu perturbá-lo além da conta, fazendo com que a aula planejada se perdesse por completo. Nesse dia, o rapaz de 15 anos resolveu que a aula deveria ser nos fundos da grande casa, à beira da piscina. O dia estava quente, o sol queimando quem ousasse enfrentá-lo. Quando o professor chegou, foi encaminhado para a beira da piscina, sob um dos imensos guarda-sóis, e dispôs seus livros sobre uma das mesas de plástico branco no pátio forrado de grama. Enquanto examinava o material de aula, seu aluno saiu de dentro da piscina, somente com uma pequena e agarrada sunga branca. O traje mínimo revelou um corpo perfeito, fruto de sua juventude e dos exercícios físicos praticados quase diariamente na academia.

O que se seguiu foi inevitável: diante da perturbação do professor, o aluno insinuou-se, fez perguntas de duplo sentido, encostou sua perna molhada na perna do outro e, não contente com isso, passava a mão pelo próprio corpo de maneira sensual sob o pretexto de tirar o excesso de água da piscina. Aquela hora e meia de aula foi desconfortável para o futuro pai de 18 anos. Pela primeira vez em sua vida, experimentava vontades e sensações desconhecidas até então. Resistiu, manteve-se firme, pois se casara havia pouquíssimo tempo. E ele era um homem! Como assim? Que diabos o outro estava pensando? Seria aquele menino de 15 anos um alerta de que seu casamento era mais do que um erro? Era um engano completo?

Pensou na esposa, na menina que já fazia parte de sua vida e de seu quotidiano. Pensou no filho que chegaria dali a pouco, pensou no amor que teria pelo segundo e no amor que não sentia pela primeira. Pensou na rotina que teria de enfrentar ao lado de uma pessoa que ele nunca chegara a amar – e que teria de respeitar, pois seria a mãe de seu filho. Confessou a si mesmo que sequer confiava nessa garota para educar uma criança. Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, sua vida dentro de um furacão de incertezas por causa de uma transada mal dada e uma gravidez indesejada. Se ao menos a família da moça não fosse tão religiosa, o aborto teria sido uma opção. Nem isso: “Não tiro esse filho de jeito nenhum. Vamos ter de casar!” foi a primeira coisa que a moça lhe disse. E se casaram.

Sua faculdade não terminada (pelo menos, era pública!), um casamento às pressas, uma cerimônia modesta e sem alegria, um pequeno apartamento alugado em nome do sogro, o pai como fiador, os trocos que ele recebia com as minguadas aulas de inglês para meninos e meninas cada vez mais ricos e mais esnobes. As viagens que fazia de casa em casa para ensinar a língua que ele aprendera com facilidade… tudo isso somado ao fato de que nunca soubera bem o que era felicidade. E a pergunta dessa mulher trouxe tudo à tona, como se a alegria e satisfação estivessem contidas na resposta que daria a ela. Ele teria coragem de admitir que pensara no filho dela em uma de suas transas com a esposa? Ele seria capaz de confessar que, naquele dia da piscina, sua vontade fora jogar os livros pra longe e aceitar as propostas que o rapaz lhe fazia com o corpo seminu, molhado e bronzeado? E, se assim o fizesse, por acaso nasceria outro dentro dele, disposto a buscar a felicidade que ele nunca conhecera?

Quem era aquela mãe que, ao dizer que conhecia o aluno, dizia também que conhecia o professor? Quem era aquela mulher que, andando curvada a passos curtos, frágil no físico, mostrava tanta força no olhar e tanta perspicácia no conhecimento da vida? Ela era uma mulher perigosa – como perigosas são todas as pessoas que nos descobrem no íntimo, porque têm o poder de nos causar infelicidade e tristeza. Sentiu-se desprotegido, vulnerável, exposto, descoberto no segredo que não ousava  contar nem para si mesmo. O desejo pelo jovem aluno não o perturbava tanto quanto a insinuação da mãe, pois ela enxergava além das aparências e da formalidade. A incômoda sensação de ser descoberto num delito, num ato que submete a julgamento aquele que o pratica! Os pensamentos que não se escondem dos olhos alheios!

Por muito tempo, ficou olhando a mulher de olhos grandes, ali de pé, diante dele, arrumando as rosas vermelhas dentro de um lindo vaso de cristal sobre a mesa da sala. Sentiu-se mal, começou a suar, olhou para o relógio e constatou que o jovem aluno estava atrasado já havia uns cinco minutos. Por fim, foi despertado de suas reflexões por uma empregada que lhe trazia uma jarra de chá gelado – ordem da velha. Servido prontamente, agradeceu pela gentileza. De repente, tudo naquele casa o incomodava – os móveis, as cortinas, os tapetes, o ar condicionado, os quadros, os lustres, as luminárias… tudo! Sentiu vontade de ir embora, cancelar aquela aula, dizer que não voltaria mais, que era melhor o menino arrumar outro professor mais capacitado, mais bem preparado que ele.

A velha terminou o arranjo de flores e, com clara satisfação, voltou-se para ele. Com um sorriso indecifrável, sentou-se na poltrona antiga de frente para o sofá e serviu-se, ela também, de um copo de chá gelado, propício para a tarde quente que não dava pistas de chuva. Aumentou o ar condicionado com o controle remoto e deixou a sala ainda mais fria. Diante do visível desconforto do jovem professor, ela se manteve em silêncio, como a dizer que, embora esperasse uma explicação, ela já possuía uma resposta para sua pergunta. A assustadora certeza  dos que conhecem a vida!

Tomado de infinita coragem ou covardia – mais tarde ele se questionaria sobre isso -, o professor de inglês, jovem, recém casado e futuro pai, afirmou:

– Não! Não tenho um caso com seu filho. Sou heterossexual, acabei de me casar, serei pai em breve e estou muito feliz com minha esposa. E a amo muito, ela é uma jovem maravilhosa e, apesar de ser muito nova, será uma ótima mãe. Nós planejamos nosso casamento porque queremos ser felizes juntos.. e estou muito contente com ela. Gostaria de deixar de ser professor de seu filho. Por favor, senhora, contrate outro, pois esta é minha ultima visita a esta casa.

Quando se serviu de mais chá, a velha deu um sorriso enigmático – seus olhos se apertaram com certo cinismo e um tanto de ironia.

Naquela poltrona confortável e luxuosa, teve a certeza de que, diante dela, estava mais um homem pronto para ser infeliz.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. “Naquela poltrona confortável e luxuosa, teve a certeza de que, diante dela, estava mais um homem pronto para ser infeliz”. Nessa última frase, vejo que por muito tempo devo ter sido infeliz, pois sempre me escondi e creio que até hoje me escondo, não sei ao certo. Na cidade onde resido, creio também que há muita, mas muita gente infeliz, tanto homens como mulheres e vivem se escondendo.

  2. Clarice keri disse:

    Realista, muito boa, igual a tantas histórias que acontecem pela vida.

  3. Baltasar Pereira disse:

    Como sempre fiquei com minha curiosidade aguçada até chegar ao final da Crônica. Fiquei muito curioso do que ocorreria após a maneira como o professor respondesse.
    Crônica muito vivaz e interessante. A Mãe do garoto de 15 anos muito perspicaz. 👍👍

  4. Rony Braga disse:

    Me prendeu até o final, mais ou menos sabia a resposta do jovem professor que por muitas vezes foram as minhas, e dependendo da situação ainda mantenho fechada minha vida particular. Me deixou pensando se já não passou da hora de quebrar as couraças que criei achando que me protegeriam nesta selva em que vivemos.
    Obrigado Vitor.

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