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A VIZINHA NA JANELA

Olhos que observam além do que deveriam; bocas que falam além do que poderiam; cabeças que julgam sem pensar. Benjamin Franklin (1706 – 1790) dizia: “Ama teu vizinho, mas não derrubes a tua cerca”.

 

A VIZINHA NA JANELA

 

                         “Estou só; não posso fazer mal a ninguém”

– Dante Milano (1899 – 1991)

       Ela tem 80 anos, viúva, filhos criados, sete netos, mora no bairro há mais de seis décadas. Conhece todos da vizinhança – os que moram ali há muito tempo e os que acabaram de se mudar.

       Conhece os donos da padaria, conhece o sapateiro do bairro, o melhor pedreiro, o encanador, o eletricista, enfim, sabe um pouco (ou muito) da vida de todos. Sabe da filha da vizinha, a moça que engravidou e teve de se casar às pressas, e depois a mãe veio falar que o bebê era prematuro: à boca pequena, esclareceu aos vizinhos que aquilo era mentira, a menina “era uma assanhada, sempre fora”. Sabe que a vizinha do lado tem um amante, bem mais jovem, porque o marido é alcoólatra e “não dá no couro”, mas “coitado, não merecia isso”.

       Sua rotina é levantar-se cedo, ir à padaria e subir a rua cumprimentando os que já se levantaram. Conforme a pessoa, ela para e conversa e fala e conta tudo o que sabe sobre aquela gente, vizinhos novos e vizinhos antigos. Volta pra casa, esquenta seu chá (o café lhe dá gastura no estômago), passa a manteiga  no pão que já esfriou e liga o rádio na cozinha, enquanto se senta à mesa e fica lembrando de tanta coisa que viu e viveu.

       Espera o telefone tocar, quem sabe algum neto dizendo que sente saudade da avó, que vai lhe fazer alguma visita! Quem sabe alguma amiga, ainda viva, convidando-a para um passeio! O silêncio na casa é grande, somente rompido pelo caminhão do gás com aquela musiquinha insuportável. Nem para isso ela se anima: o botijão está cheio, não precisa trocar.

       Faz um almoço, às vezes erra na dose e guarda na geladeira mais do que comeu. “Esquento na janta”, pensa, e lava sua pouca louça antes de se deitar um pouco à tarde. Lá pelas 5h, já está de pé e vai para sua janela, espiar o pôr do sol (“Coisa linda!”) e observar os vizinhos e filhos dos vizinhos que chegam do trabalho.

       Há um mês, mudou-se uma família para a casa da frente, do outro lado da rua. Gente simpática, um casal com dois filhos – a filha é mais velha que o rapaz. A velha soube que eles têm 23 e 20 anos respectivamente. Pegou amizade com a mãe dos moços e frequentemente atravessa a rua para conversar com ela. Não deixa de perguntar de onde vieram, o que faz o marido, o que fazem os filhos, se estudam, se trabalham, se só estudam ou se só trabalham ou se as duas coisas. Ela tem um jeito todo sutil de perguntar, e somente os vizinhos de longa data conhecem-lhe a malícia.

       Não contente com as conversas que mantém com a nova vizinha, ela se levanta cedo, lava o quintal com sua mangueira até que o marido e os filhos da nova amiga saiam para o trabalho. Nada lhe escapa das vistas – nem mesmo o fato de a moça ter um namorado, mas o irmão chega e sai sozinho todos os dias, até nos fins de semana. E fica intrigada…

       Uma nova tarde vem, um novo pôr do sol se inicia (“Coisa muito linda!”), mais um dia vai terminar, e ela ali, na janela, observando quem chega e a que horas chega. A maioria dos vizinhos a cumprimenta, mas alguns se sentem incomodados com seu olhar de ave de rapina. É a vez do filho da vizinha da frente, moço bonito que lhe traz uma certa tristeza, uma melancolia muito grande – gosta de vê-lo, mas ele a deixa triste. Pensa nos netos e lembra que o caçula tem a idade dele. Não suporta as duas noras, mas gosta dos dois genros. Quanta saudade das crianças!

       Num sábado quente, sol das 10h da manhã, ela ouve uma música alta e vai até a janela ver de onde vem aquilo. Do outro lado da rua, na calçada, o filho da vizinha, “o moço bonito” está com as portas do carro abertas, tapetes de borracha do lado de fora, carro vermelho todo ensaboado,  mangueira jorrando água, radio ligado e a música tocando. Ele está de bermuda, sem camisa, braços e pernas musculosos, peito peludo, boné que o protege do sol, distraído em sua atividade, nem vê que ela o observa. A mãe lhe traz o celular, “filho, atende aqui…”, e ele diminui a música para poder ouvir o que dizem do outro lado. Encosta-se no carro, seu torso nu e molhado, a bermuda ensopada, tira o boné para enxugar o suor na testa.

       A velha já está na calçada, observando tudo aquilo, e não deixa de ouvir a conversa. O rapaz se despede do namorado com um beijo e promete ligar depois que lavar o carro. Falam qualquer coisa sobre uma nova boate na cidade e combinam de ir conhecê-la naquela noite de sábado. Ela volta rapidamente para dentro de casa e seu primeiro impulso é ligar para uma outra vizinha e contar o que acabou de ouvir. Liga!

       Em poucos dias, toda a rua saberá sobre o “filho da vizinha que é homossexual”, “um moço tão bonito!”, “uma judiação”, “culpa da mãe e do pai que não educaram direito”. “Agora, só falta trazer namorado para debaixo do teto dos pais”. “Absurdo!”. “De onde veio essa gente?”.

       A fofoca se espalha. Uma vizinha comenta que “Ih, é igual ao neto da Florinda… um horror!”. Ela não economiza no noticiário – conta para todos o que descobriu sobre os novos vizinhos. De uma hora para outra, deixa de cumprimentá-los, vira a cara, não atravessa mais a rua.

       Ainda fica na janela vendo o pôr do sol, ainda vai à padaria bem cedo, lava seu quintal e observa a tudo e a todos. Levanta o pescoço quando vê o carro do “moço bonito” chegando.

       Ainda vai para dentro às 18h30 em ponto para ver suas novelas. Ainda se senta na antiga poltrona para ver a TV, ao lado do telefone, na esperança de que alguém ligue para saber se ela está viva.

       E o telefone, do mesmo modo, ainda continua mudo.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. O telefone dela continuará mudo, claro. Quem quer uma jararaca como amiga?

  2. Verônica disse:

    Sempre uma história real e divertida de ler. Obrigada!

  3. Baltasar Pereira disse:

    Crônica bela e triste,pois mostra a Vida de uma Senhora de 80 anos e percebemos como os caminhos que ela trilhou acabaram deixando sozinha, sem ninguém a se preocupar com a mesma. Ela não consegue sair deste círculo vicioso de comentar sobre a Vida dos outros, mesmo que tente acabar com a reputação dos mesmos. Senti pena dela. Quantas Histórias não são assim e terminam desta maneira. Crônica muito boa de se ler.

  4. Clarice keri disse:

    Crônica ótima, nos faz pensar que todos nós conhecemos alguém sem vida própria, e que se apossa da vida alheia.

  5. Bernadete disse:

    Quem nunca teve uma vizinha assim? A nossa era a dona Ana. Não era sozinha. Tinha marido e filhos casados. Mas tomava conta da vida de toda vizinhança. Aff! Ninguém merece!!

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