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JANEIRO, NA PRAIA CLARA

O verão, o sol e o mar… um encontro casual e um dia muito especial. O que estes dois deveriam ter feito e que não fizeram?

 

JANEIRO, NA PRAIA CLARA

 

       Numa manhã de verão intenso, cansado de tanta bagunça dos amigos no apartamento de praia de um deles, resolvi levantar cedo, antes de todos, e respirar a brisa do mar, o cheiro salgado do mar. Eram já três dias de muita bebedeira, muita pizza, garotas de prédios vizinhos nos visitando e “ficando para dormir” e essas coisas que homens fazem quando estão solteiros e a fim de muito sexo.

       Meus amigos, sabendo de minha preferência, respeitavam minha privacidade, por isso fiquei com um quarto só pra mim, enquanto os outros quatro dividiram os outros dois cômodos. Da minha cama, eu podia ouvir a algazarra, mas não me animava a participar daquilo – não mesmo! Ainda assim, a viagem vinha sendo muito, muito bacana, pois eram amigos de quem eu gostava bastante.

       Naquela manhã, contudo, acordei com vontade de ficar um pouco mais sozinho, pensar um pouco na vida – com sua imensidão, o mar tem esse poder sobre mim: me faz pensar, refletir, até sonhar. Gosto de ficar na areia, caminhar com os pés na água, ondas que chegam somente ao meu tornozelo.

       Eram 8h30 da manhã, mais ou menos, e a praia já contava vários banhistas e, principalmente, pessoas que caminhavam ou corriam, aproveitado o sol que ainda não era muito forte àquela hora. Não tive vontade de andar. Passei o protetor solar sobre meu “bronzeado verde musgo” e fiquei sentado na areia branca. O céu, o mar, as ondas brancas, a areia molhada… Aquilo tudo me lembrou de Clara Nunes, famosa cantora que atingiu seu auge nos anos de 1970 e morreu precocemente no começo dos anos 80. Uma de minhas músicas prediletas era “Na linha do mar”: “Galo cantou às 4h da manhã / Céu azulou na linha do mar / Vou me embora desse mundo de ilusão / Quem me vê sorrir não há de me ver chorar..”. Sempre achei isso muito bonito!

       Distraído que estava, não percebi aquele homem vindo da água, enxugando o rosto com as mãos, alisando seu curto cabelo para trás, corpo bonito, sunga azul, braços, pernas e peitos muito peludos, e uma barba igualmente cheia, embora bem aparada. Ele parou na minha frente, de costas para o mar, guardando uma certa distância, tapando o sol que me cegava. Num primeiro momento, não consegui ver seu rosto em contraluz; ele passou por mim e sentou-se bem mais distante da água, a uns 5 metros de onde eu estava sentado.

       Não pude deixar de olhar para trás – ele era mesmo muito bonito. Como sempre, olhei rapidamente para a mão esquerda e lá estava ela: a aliançona gritando: “Este aqui, não, jacaré! Este não é dos seus!”. Sorri pra mim mesmo e me virei novamente para o mar. Senti vontade de caminhar. Levantei e fui até a beira da água lavar minhas mãos. O sol já começava a ficar forte…

       Eu havia andado bem uns 100 metros quando vi o mesmo homem ao meu lado, caminhando a passos largos, desacelerando quando me alcançou e dizendo com um sorriso: “Bom dia, tudo bom?”. Instintivamente, respondi ao cumprimento e sorri também. Ele perguntou se podia caminhar comigo, pois “andar sozinho é muito chato”. Claro que gostei da ideia, embora o bambolê no dedão continuasse gritando pra mim. Pensei: “Ah, o cara é casado, mas é bonitão… pode ser um bom papo…”. E era!

       Caminhamos bem uns 5 quilômetros sob o sol, sempre com os pés na água e falando, falando muito do que gostávamos, do que fazíamos, dos lugares onde morávamos (éramos ambos de São Paulo), dos amigos que tínhamos etc. Ele falou da esposa (era casado havia 18 anos), dos dois filhos – um de 15, outro de 17 – do trabalho (era advogado) e do porquê estava sozinho naquele dia: “Eles subiram antes de mim. Preferi ficar mais um dia, sozinho, para descansar de tudo e de todos…”.

       A frase não concluída me pareceu um pouco enigmática, mas não fiz a observação. Quando ele perguntou minha idade e eu lhe falei “tenho 26”, ele respondeu que eu era um menino, pois havia completado “47 dois dias antes”. Dei-lhe os parabéns atrasados, estendi-lhe a mão e senti seu aperto forte. Eu só esperava que minha sunga não me denunciasse…

       Ele perguntou se eu também estava sozinho. Quando lhe disse que estava com amigos, ele quis saber de namorada, esposa etc. Havia muito tempo que eu não escondia de ninguém minha preferência. Eu disse simplesmente: “Sou gay, mas estou sem namorado faz algum tempo. Antes só…” e ri. Ele concordou comigo e, abaixando a cabeça, disse: “Eu gostaria de ter essa coragem que você tem…”. De repente, um silêncio se instaurou entre nós, somente o barulho do mar e um navio que apitava bem distante, quase na linha do horizonte. Diante do meu silêncio, ele começou:

       – Eu queria ter a coragem de terminar meu casamento, sair da sociedade com meu sogro no escritório que temos, parar de fingir que tudo está bem, que sou um homem feliz, que amo minha esposa, que um apartamento com 500 metros de frente para o mar e um outro no Rio de Janeiro, também de frente para o mar e ainda maior, um vida de luxo e regalias podem me fazer feliz. Não podem! Não podem principalmente porque não tenho coragem de ser quem eu sou, sou um covarde há pelos menos 30 anos…

       O vento no rosto, o barulho do mar, a água quente, a areia tão branca pareciam deixar aquele homem ainda mais bonito do que na primeira vez em que o vi, algumas horas antes. Tudo era de um azul cristalino e forte – o céu, o mar, sua sunga, o horizonte. De repente, parecia que tudo fazia sentido naquela manhã e, quando pensei nesse encontro, me lembrei do conceito de Sincronicidade de Jung. Achei que eu estava delirando por causa do calor…

       Quando senti o braço dele colado ao meu, não consegui levantar meus olhos do chão. Ele insistia, e eu não mantinha distância. Caminhamos assim por algum tempo e senti uma vontade enorme de beijá-lo ali mesmo.

       Na volta, obviamente, fui parar no enorme apartamento dele. Fomos para o quarto de hóspedes, assim minha consciência doeria menos – quando eu disse isso, ele riu, mas a possibilidade de ele me levar para o quarto do casal não me fez bem.

       A transa foi boa, muito boa. Poucas vezes, beijei e fui beijado com tanta intensidade e desejo. Como não tínhamos camisinha, ninguém penetrou ninguém, mas o sexo oral foi maravilhoso. Gozamos duas vezes, e eu evitei o assunto “esposa e filhos”. Almoçamos um peixe delicioso e ficamos ali a tarde toda. À noite, pedimos uma pizza e comemos ali mesmo, no apartamento, sentados na varanda, vendo o mar que se escondia à medida que a noite vinha descendo. Esvaziamos algumas garrafas de vinho…

       Quando olhei, meu celular estava vomitando mensagens dos rapazes, preocupados com minha ausência. Pedi desculpas, contei o que houve e fui perdoado sob muito riso e aplauso… amigos! Ele ouviu o áudio do meu celular e riu bastante.

       Nós nos separamos já bem tarde, perto da meia-noite. O dia tinha sido muito, muito bom para ambos, e acho que todo  o mundo tem um dia assim para guardar na lembrança, aquele dia que a gente gostaria que tivesse umas 100 horas pelo menos… ele não me convidou para dormir ali, eu não me ofereci.

       Eu ainda ficaria – como fiquei – mais três dias com a rapaziada lá embaixo. Trocamos telefones, mas eu sabia que ele não ligaria, como eu também não faria isso. No dia seguinte, recebi um whatsapp bem cedo – era ele dizendo que estava subindo para São Paulo e agradecendo “por tudo”. Eu respondi que ele não tinha o que agradecer e desejei-lhe boa viagem, mas, no fundo, eu também estava bastante grato pelo dia maravilhoso que ele havia me proporcionado.

       Aconteceu o que eu não queria: passei os outros dias meio melancólico, quietão, saindo do meu quarto somente para comer alguma coisa com os rapazes. Notando meu estado de espírito, eles tentaram me animar, mas foi em vão. Como é que se dizia antigamente? “Amor de praia não sobe a serra”… não era amor, mas era alguma coisa. Havia ficado alguma coisa!

       No último dia, fui caminhar na praia novamente. Pensei muito nele, pensei muito no que dissemos e na intensidade do que tivemos.

       Na viagem de volta, fomos pegos por um nevoeiro intenso na Imigrantes: quase não se enxergava nada na pista. Um dos rapazes, o que estava dirigindo, falou: “Nossa, que coisa! Não dá pra ver nada!”.

       “Melhor”, pensei. E Clara me veio à mente outra vez: “Quem me vê sorrir não há de me ver chorar”.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Professor, tive uma história parecida, mas não foi na praia. Essa minha experiência além de ter sido ótima, me marcou. Depois de muitos anos, conheci os filhos e a esposa dele por mero acaso. Hoje ele não se encontra nesse plano, está em um bem melhor.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Esta Crônica me deixou muito ansioso para chegar rapidamente ao final. Quanto mais lia mais queria saber o que iria ocorrer,embora ao mesmo tempo imaginava que não iriam continuar. Deu para imaginar o sofrimento do homem casado em estar vivendo uma grande mentira,mas dá para entender e compreende-lo. Bela Homenagem também a Clara Nunes.👏👏👏👏

  3. Clarice keri disse:

    Que história gostosa, daquelas que nos faz pensar na vida, nos amores perdidos, ótima crônica .

  4. Joao disse:

    Hummm…..acho que irei dar uma volta na praia.

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