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A FOGUEIRA

Em nome do bem, muitos dos maiores males vêm sendo  cometidos pelo ser humano em sua história. O preconceito, a intolerância e o fanatismo sempre desempenharam papéis fundamentais nesse cenário.

 

A FOGUEIRA

 

Europa, janeiro de 1375. As pessoas se aglomeravam na praça central. Lá, um tronco já se projetava contra o céu na tarde fria, um céu cinzento, anunciando a neve que em breve deixaria o vilarejo medieval branco como a alma dos puros, alvo como os espíritos sem mácula.

O condenado daquele dia era um moço bem jovem, na casa de seus 20 anos. Filho de agricultor, o rapaz, embora bonito, era analfabeto, jamais havia frequentado uma escola, não sabia escrever o próprio nome, mas era um braço forte para trabalhar na colheita debaixo de sol ou de chuva. Sempre sorridente, simpático e respeitador, ele era conhecido de todos os moradores do lugar.

Sua família era humilde, respeitadora dos valores cristãos, pagava seus impostos ao rei e à Igreja com todo o prazer e dedicação que se esperavam de pessoas de bem. Eram o pai, a mãe, o rapaz condenado e duas irmãs mais jovens. Ele era o filho caçula.

Tudo começou quando alguém – nunca se sabia quem – começou, à boca pequena, levantar suspeitas de que o moço praticava atos libidinosos com outros homens, servindo-lhes de “mulher”, prestando-se a um papel que ofendia a Deus e à Santa Madre Igreja! Como a Peste Negra daqueles dias terríveis, o boato se espalhou, tomou proporções enormes para o pequeno vilarejo e chegou aos ouvidos do Bispo.

Mas como era possível que tal iniquidade se verificasse naquele lugar de gente temente a Deus? Como era possível que alguém ousasse desafiar as leis divinas e a Santa Igreja ao cometer tal ato ofensivo aos santos e anjos do Senhor? Só havia uma solução: que um pecador com tamanha audácia pagasse com a própria vida – estava claro!

Um tribunal se instaurou. As mulheres da família do rapaz ficaram perplexas; o pai sentiu-se insultado pelo suposto comportamento do filho. “Onde foi que eu errei? Onde foi que eu errei, meu Deus?”. A tempestade de vergonha se abateu sobre aquela família – não havia lugar onde pudessem se esconder sem serem apontados por dedos acusadores ou serem alvos de fofocas e cochichos dos vizinhos. Na feira, no mercado, na rua, nas filas para o pagamento do imposto ao rei… vergonha, muita vergonha por terem um herege dentro de casa. Um herege!

Ao rapaz, coube o isolamento e prisão antes do julgamento final. Testemunhas que não tinham visto nada falariam; pessoas que nem o conheciam direito afirmariam tê-lo visto em atos libidinosos com outros homens; mulheres com seu temor ferrenho à Igreja mostrariam sua indignação diante de padres e bispos que viriam de outros povoados para a condenação daquele moço pecador e vil.

Na cadeia, somente a visita da irmã mais velha – só ela teve a coragem de ir visitá-lo, levar-lhe algum conforto, mostrar-lhe que alguém se importava com ele, independentemente do que houvesse feito. Na segunda visita, o réu tomou coragem e falou. Falou tudo o que havia ocorrido, o que vinha ocorrendo fazia pelo menos três anos: ele era amante do rei. Sim, do rei! Aquele mesmo soberano, um homem austero, pai de três filhos, 35 anos, sobre quem jamais havia pairado qualquer suspeita de pecado! O rei havia visto o rapaz, então com 17 anos, quando da coleta de impostos – e se apaixonara pelo jovem.

Mandara buscá-lo a pretexto de torná-lo seu servo pessoal, e, como ordens reais jamais eram contestadas, realizou-se seu desejo.

O primeiro encontro fora motivo de orgulho para a família e razão de muito constrangimento por parte do rapaz. Quando voltou para casa, havia nele um misto de vergonha e prazer, não podia negar a si mesmo, mas tinha consciência do que acabara de acontecer. Seus pais não pouparam os vizinhos: todos ficaram sabendo que o filho fora convocado pelo rei para servir no castelo, para servir ao rei pessoalmente, nos seus aposentos, como um criado especial, talvez tendo que morar na residência do soberano. E assim, aconteceu: o jovem vinha visitar a família um vez por mês. Bem vestido, bem calçado, bem alimentado, ele era a própria imagem da corte. Os benefícios se estenderam à família também – puderam experimentar um certo conforto trazido pela nova condição do moço.

E tudo ia muito bem, mas a inveja tem olhos e ouvidos por toda a parte. Não demorou para que o caso do rei com o rapaz fosse objeto de ódio dos mais próximos do soberano. Sua mulher talvez fosse a maior atingida, mas ela não se importava – desde seu casamento arranjado, vivia com aquele homem por obrigação, não por amor. E os três filhos que ela lhe dera haviam sido concebidos contra sua vontade, apenas como dever de rainha para com seus súditos. Quanto mais o marido a deixasse em paz, melhor. Não, ela não tinha nada contra o jovem que se deitava em seu lugar – ele lhe fazia um favor.

Outros, contudo, não sentiam tal indiferença. Se alguém quiser fazer inimigos, mostre-se feliz com a vida que leva, mostre-se satisfeito com a posição que conquistou. O rapaz fazia o rei feliz e era feliz com isso. Deitava-se com ele e se sentia amado, protegido, resguardado da pobreza lá fora do castelo… até que veio o boato.

O rei teve uma reunião com os sacerdotes e quis saber quem começara a espalhar “tal calúnia”. Ninguém soube informar-lhe, mas afirmaram que era papel da Santa Igreja apurar o que havia de verdadeiro naquilo – “ordens de Sua Santidade, o Papa!”.

Sem explicações, o rapaz foi afastado de seu amante. Nunca mais pôde entrar no castelo, nunca mais pôde se aproximar do rei, nunca mais viu o rosto do homem que amava e que o amava também. Antes do julgamento, foi levado à masmorra e lá recebeu somente as visitas da irmã, como já se disse acima.

Sua condenação era certa. A rainha tentou interceder, já que o rei recolheu-se e não mais se manifestou sobre o caso. Ele chegou mesmo a mandar uma carta ao Papa, dizendo-lhe que, se o rapaz fosse culpado, que pagasse com a vida. O nojo da rainha pelo marido aumentou. Ela, porém, nada pôde fazer – era rainha, mas era mulher, mulher com o papel de dar ao rei seus herdeiros e só.

Voltemos ao início da história. A multidão estava reunida na praça central do vilarejo. Cerca de 700 ou 800 pessoas, além de religiosos e alguns soldados do rei para que mantivessem a ordem. O sino da pequena igreja anunciava o horror. O rapaz foi trazido acorrentado sob vaias e apupos do povo que lotava a praça. O dia estava frio, nevaria naquela noite, mas o fogo seria aceso bem antes para que não houvesse tempo de o jovem ser salvo pelo gelo e pelo vento.

Alguns não acreditavam no que estava acontecendo; outros aplaudiam e gritavam em êxtase, clamando que o mundo deveria ser purificado de bruxas, adoradores do Mal e de sodomitas que ofendiam ao Senhor! Um primeiro gritou, outros o acompanharam, e logo a praça estava tomada pelo grito uníssono de indignação, revolta e ódio. Alguns padres se entreolhavam e esboçavam um leve sorriso.

Depois das orações feitas pelo sacerdote escolhido para o ritual, a fogueira foi acesa, e as chamas, atiçadas no capim seco na base do tronco ao qual o rapaz estava amarrado, subiram com rapidez, espalhando o cheiro de carne incinerada por toda a praça. A mãe e as irmãs do rapaz choravam desesperadas, o pai não tinha mais lágrimas e se limitava a olhar para o céu como a pedir que seu filho, apesar do pecado que cometera na Terra, fosse perdoado quando chegasse ao outro lado.

O espetáculo era horrendo. Por entre as chamas, via-se o rosto do bonito jovem tomado de terror, até que um grito saiu-lhe da garganta em meio ao fogo alaranjado, potente, imponente e impiedoso. Logo, o mundo estaria um pouco mais purificado, e os homens ficariam mais temerosos à Santa Madre Igreja! Sobre as nuvens, anjos impossibilitados de intervir lamentavam a ignorância dos homens e as trevas que se alastravam sobre a Terra. Havia quantos séculos testemunhavam a crueldade e a intolerância? Por quanto tempo mais isso persistiria, Senhor? Não muito longe dali, os mesmos anjos podiam ver um outro anjo, um anjo caído que se regozijava com a ignomínia e a estupidez do ser humano.

No castelo, quebrando um protocolo de ter que pedir uma audiência ao próprio marido, a rainha entrou no quarto do rei e, vendo-o junto à lareira, pensativo, olhar distante e cheio de soberba, disparou:

– Que você era um lixo como governante, eu já sabia. Agora, que você era um covarde, um omisso, vil e mesquinho, fiquei sabendo agora. Em que criatura abjeta você se transformou! Você errou como homem e como rei – não soube amar e jamais soube defender os seus súditos… mesmo aquele que você disse ter amado neste mesmo quarto, sobre esta mesma cama. Poder e impunidade andam juntos, não é mesmo, Alteza? Que Deus tenha misericórdia de gente como você e como aqueles lá fora que se dizem religiosos! Assusto-me ao pensar em quantos como você ainda povoarão este mundo… e quantos inocentes como aquele rapaz ainda pagarão pela corrupção, pelo preconceito e pela disseminação do Mal…

Enquanto isso se desenrolava no castelo, o rapaz ardia na praça central. A multidão precisava castigá-lo por seu “pecado”.   

E assim foi. E assim tem sido!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. delço Goreti Gialorenço disse:

    Crônica excelente, como todas as outras!

  2. Bernadete disse:

    Gostei muito da crônica! Como sempre, bem escrita e com um assunto, infelizmente nesse caso, ainda presente em nossas vidas. Parece que o preconceito e a intolerância nunca vão desaparecer.

    • Aurélio disse:

      Excelente texto na forma e no conteúdo. Mais uma vez, nós, leitores, temos o prazer de saborear uma bela crônica acerca de um tema, infelizmente, atual.

  3. Soninha disse:

    Maravilhoso texto e reflexão.

  4. Baltasar Pereira disse:

    Nossa ,realmente me impactou esta crônica. Só de imaginar a tortura que este rapaz passou e as pessoas vendo e nada faziam e até gritavam contra o mesmo. É uma Crônica, não aconteceu esta estória, mas na realidade quantas Histórias não ocorreram iguais a esta e quantas ainda não continuam ocorrendo.
    Sem o fogo da Inquisição, mas através da maledicência das pessoas e infelizmente em alguns países onde existem Grupos Extremistas Terroristas ou os próprios mandantes que mandam açoitar. Triste Realidade. Bela e Melancólica Crônica. 👏👏👏👏👏👏

  5. Essa crônica não me deixou perplexo, até pq, nessa época era “comum” a Santa Igreja (que de Santa não tem nada) agir dessa forma. Sofrimento terrível o do rapaz. Por outro lado, isso sempre ocorreu e sempre ocorrerá. No final da crônica está, E assim foi. E assim tem sido!
    Pra nós, e assim será…… Minha mãe dizia, “quem muito fala, já fez ou morre de vontade”.

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