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PRIMEIRAS LETRAS

       Velhos escritos são testemunhos de nossos antigos pensamentos e de nossas antigas concepções acerca do amor, da vida e do mundo. O que pensávamos de tudo isso na juventude, em dias repletos de ilusão, sonhos e planos?

 

PRIMEIRAS LETRAS

       Era o longínquo ano de 1986. Tendo acabado de entrar no Mackenzie para cursar Letras, eu vinha de uma paixão, ou melhor,  de uma obsessão muito grande por um homem 14 anos mais velho. Na época, eu confundia os sentimentos e acreditava mesmo que o que eu sentia era paixão ou até mesmo amor. Hoje, muito tempo depois e com mais experiência, não acredito que fosse nem uma coisa, nem outra. O fato é que sofri… e muito!

       Sofri por não ter com quem conversar. Sofri porque acreditava que, se alguém soubesse de minha preferência sexual, eu seria execrado. Então, não ousava contar sequer para um grande amigo ou amiga. Eu estava enganado sobre isso também, felizmente.

       Bem, como eu dizia, sofri muito principalmente porque ele, como vim a saber muitos anos depois, achava que eu era muito jovem, muito novo para um relacionamento sério. Assim, manteve uma distância depois de dois ou três encontros e duas transas. Eu, inexperiente em tudo, me deixei levar pela coisa e comecei a fantasiar que ele era o homem da minha vida. Foram dias difíceis aqueles de 1985. Muito difíceis! Muita solidão, muita lágrima derramada no escuro do quarto depois que os irmãos pegavam no sono. E eu fazendo de tudo para que ninguém jamais suspeitasse.

       Acabei superando tudo depois de um câncer na mão tratado com radioterapia, fruto de uma depressão, penso eu. Jamais contei isso a meus pais e, se escrevo agora, é porque ambos se foram para outro plano, como gosto de crer. Meu primeiro contato com a paixão (ou que nome aquilo pudesse ter) foi duro, muito duro.

       Entrei na faculdade no ano seguinte. Fiquei muito tempo sem estudar devido a vários problemas – o exército, o desemprego e a falta de grana foram os principais. Curso noturno na famosa universidade da rua Maria Antónia. Aquele primeiro semestre de 1986 também não foi fácil. Eu vinha do Bairro do Limão, onde trabalhava (jornal O Estado de S. Paulo) e corria pra aula, sem tempo e dinheiro para poder jantar. Às vezes, passava no supermercado, que até hoje existe em frente à faculdade, e comprava uma maçã ou uma pera para aguentar até que chegasse em casa para poder fazer uma refeição decente. Isso por volta das 23h30, meia-noite… para acordar no dia seguinte às 5h30 da manhã.  

       Houve um dia em que passei no supermercado – por volta das 19h – e vi o cidadão no caixa, pois ele morava bem perto dali. No rádio da loja, “Time”, do Alan Parsons. Inesquecível! Não sei se ele me notou. Tive um misto de raiva e de vontade de falar com ele, tentar uma reaproximação, o que não era bom sinal: eu não estava totalmente curado da coisa. Ele se foi antes que eu pudesse decidir, e foi melhor assim. Paguei minha maçã e corri para a aula. O coração batendo forte. Eu não o via fazia muito tempo.

       Nossa primeira aula era Redação. O professor Agnaldo, sempre muito instigante, propôs que escrevêssemos uma texto a partir de um parágrafo que ele ditaria, isto é, todas as redações da classe teriam o mesmo início a partir do qual teríamos de criar nossa história. O trecho era mais ou menos assim: “O vento frio cortava as árvores e, por entre as folhas, arrastava as lembranças e fazia a saudade crescer no peito…”. Nem preciso dizer que eu estava mais do que inspirado naquele começo de noite.

       Escrevi meu texto levado pelo sentimento, por tudo aquilo que (ainda) estava no meu peito e que não tinha tido chance de ser extravasado. Entreguei a redação e fui tomar um ar, fui arejar a cabeça que estava a mil simplesmente por ter visto aquele homem.

       Na semana seguinte, Agnaldo entrou na sala e pediu que fizéssemos um círculo: ele comentaria algumas das redações e pediria a opinião da classe sem dizer o nome do autor. Se a pessoa quisesse se identificar, muito bem. Caso contrário, poderia permanecer no anonimato. Eu me sentei ao lado de uma grande amiga que também não sabia nada de mim, não àquela altura, e achamos que a aula seria muito bacana. Quando ouvimos as instruções do professor, apressei-me em dizer pra ela: “Tomara que ele não leia a minha… Deus me livre dessa exposição!”. E rimos. Meu alívio foi grande quando vi nas mãos dele que minha redação era a última da pilha, isto é, não daria tempo para que ele lesse e comentasse minha história.

       Agnaldo leu umas quatro ou cinco, pediu a opinião da classe, fez suas críticas e tudo corria bem. Minha agonia começou quando ele olhou para todos do círculo e disse: “Tenho uma redação aqui que quero ler para vocês. Deixei pro final porque ela me tocou muito e, de alguma forma, é especial, bem especial. Vou ler para vocês, prestem atenção. Se a pessoa quiser se identificar, faça-o. Eu gostaria que sim, este aluno não deve ficar no anonimato”. E pegou meu texto do fim da pilha de redações.

       Sob o olhar e ouvidos atentos, leu minha história, enquanto eu me encolhia na cadeira. Minha amiga me olhava e ria em silêncio, ciente de meu desespero. Eu era um misto de vergonha, timidez e orgulho. Era tudo isso!

       Quando ele terminou a leitura, vários alunos expressaram seu contentamento: o texto estava bonito, poético, sensível, tocante, profundo… só podia ser de alguém apaixonado, muito apaixonado. Agnaldo perguntou mais de uma vez quem era o autor e acabei por me identificar. Houve algumas críticas negativas, claro, mas a maioria da classe gostou muito e veio falar comigo depois. Com raríssimas exceções, éramos todos, ali, apreciadores de literatura, de histórias bem contadas. E meus colegas ficaram empolgados pelo meu texto.

       Agnaldo era um homem muito, muito inteligente. Duvido que ele não tenha percebido que eu era gay. Foi muito discreto, obviamente, e também fez suas críticas – na maioria positivas, me incentivando a continuar escrevendo.

       Dei a redação de presente para a amiga que acompanhou meu sofrimento na aula: gostou tanto que pediu para que ficasse com ela. Dei-lhe o texto com o maior prazer. Nossa amizade se estendeu, ainda, depois que fui para a período da manhã, resistiu até mesmo vários anos depois da faculdade. Nunca mais pus os olhos naquele texto. Nunca mais li aquela redação, embora eu soubesse que estava muito bem guardada.

       Tudo é tão passageiro neste vida! Agnaldo foi para a Unicamp no ano seguinte; perdi o contato e a intimidade com aquela amiga em um processo que, até hoje, é uma incógnita para mim; aquele texto não deve existir mais depois de tantos anos; aquele homem que tanto me inspirou também já deixou este mundo e, na época de sua morte, nós éramos bons amigos, vejam só!

       Há um bonita crônica de Clarice Lispector chamada “Vergonha de Viver”. No texto, confessa-se extremamente tímida. Diz que, aos nove anos de idade, escreveu uma peça de teatro em três atos e, com medo de que a achassem, escondeu-a atrás de uma estante, pois já falava de amor. Lamenta ter rasgado seu texto porque gostaria de saber o que pensava do amor aos “nove precoces anos”.

       Hoje, sinto um pouco essa curiosidade: gostaria de ler novamente aquela redação. Não me lembro de seu conteúdo, não me lembro do que eu possa ter escrito na emoção daqueles dias conturbados enquanto eu descobria o mundo aqui fora.

       Nela, porém, estavam os sonhos e ilusões amorosas de um jovem homossexual aos 22 anos de idade.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. Ricardo Cano disse:

    Apesar do tempo passado, o texto ainda exala muita emoção. Não tanto uma emoção passional, mas sim uma emoção afetiva por tempos, pessoas e situações passadas…

  2. Na minha primeira e creio que única paixão, eu não escrevi, e sim, falei para a pessoa. Foram 12 anos bárbaros, como eu gostaria de poder voltar no tempo.

  3. Baltasar Pereira disse:

    Belíssima Crônica ao expor fatos ocorridos de uma maneira em que o passado estava tão presente nos tempos da Faculdade e como os Sentimentos quando intensos perduram em nós por muitos Anos e com o tempo vão diluindo.
    Muitos de nós choramos por Amor/Paixão, mas imagine ser Homossexual nos anos 70 ou 80. Não era fácil e desabafar menos ainda.
    Escrita de maneira que nos envolvemos com a História e torcemos para que aquela Redação seja reencontrada e possa ver como sentia tudo naquela Época. 👏👏👏👏

  4. Clarice keri disse:

    Essa sua riqueza de detalhes me fascina, obg.

  5. Bernadete disse:

    Adorei! Linda crônica!

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