Nunca estamos mais sós do que quando enfrentamos a dor, a saudade e a perda. E tudo isso pode vir em um dia destinado à alegria e à música.
AUSÊNCIA
Acordei hoje de manhã, e o sol forte de verão brasileiro já batia na janela, implacável, certeiro e pontual. Como de costume, instintivamente estiquei meu braço para o outro lado da cama (agora) enorme e só pude abraçar o travesseiro sobre o qual você repousava sua cabeça – uma cabeça por vezes repleta de problemas, cismas e dúvidas quanto às coisas da vida.
Quantas vezes você perdeu o sono por causa daquele irmão que só ligava para pedir dinheiro! Quantas vezes deixou de dormir por causa do telefonema de sua mãe contando mais uma barbaridade de seu irmão caçula, alcoólatra e violento! Quantas vezes ficou na sala, ouvindo música no escuro, remoendo a culpa de ter uma vida muito melhor que a de seus familiares!
E eu fui testemunha de tudo isso nos cinco anos em que ficamos sob este mesmo teto… eu vi tudo o que lhe tirou o sossego, eu sabia de tudo o que podia lhe fazer sorrir, eu conhecia você “mais do que a sua mãe”, lembra?
Saio da cama sem vontade porque o telefone toca e, do outro lado, minha melhor amiga, preocupada, é suficientemente gentil para me ligar antes de ir para o trabalho. Atendo sem vontade, atendo porque vejo o número dela no celular, atendo porque não tenho nada mais a fazer. Ela me pergunta como estou, embora saiba da resposta. Não posso ser rude com ela, a pessoa que mais tem me apoiado nestes 16 dias sem você aqui. Sou carinhoso como devo ser, respondo com delicadeza às suas perguntas sobre mim, sobre a nossa casa… mas não tenho vontade de nada. Nossa conversa é breve: ela tem de sair pro trabalho; eu tentarei sair para fazer minha caminhada, para aproveitar o dia ensolarado de fim de fevereiro antes que a chuva da tarde caia sobre a cidade.
Vou até a cozinha, preparo meu cereal, olho o relógio – 8h30 da manhã. Como meio sem vontade; ao lado da minha tigelinha está a sua, intacta, imóvel, limpa desde… aquele dia. Não tenho forças, nem vontade de guardá-la. Corto uma banana, despejo o leite e meu desjejum está pronto. Cereal, banana e leite: aprendi isso com você!
Saio pra rua. O sol está mais forte, o céu carregado de nuvens, chuva mais tarde sem dúvida. Tenho um misto de sensações por estar em férias: de um lado, gostaria de estar trabalhando para me afastar de tudo isso um pouco; de outro, sei que não tenho cabeça para voltar àquele banco e cuidar de uma equipe de sete pessoas sob minha responsabilidade. Ambiguidades, sentimentos dúbios, incertezas do começo ao fim do dia.
Enquanto caminho, todas, absolutamente todas as músicas no fone de ouvido me lembram você e as situações que vivemos juntos, os planos que fizemos, as ideias que tínhamos, nossos projetos para a velhice daqui a 15 ou 20 anos. “Vamos morar fora?”, eu disse. E você: “Onde, você é maluco. E nossas famílias?”.
Eu é que pergunto isso agora – e nossas famílias? Onde estão todos agora? Nem um telefonema sequer do meu lado ou do seu. Sumiram todos. Ficaram somente os (verdadeiros) amigos. Esses se mostram preocupados, solidários e presentes… são poucos, mas são aqueles cuja companhia e preocupação me interessam.
Um rapaz bonito, cabelo curto, me lembra você. Ele passa por mim no sentido contrário, vem correndo, corpo molhado de suor… e me lembro de como gostávamos de fazer caminhadas juntos.
Termino meu trajeto. Estou suado, um pouco cansado depois de 1h30, mas é isso que tem mantido meu (pouco) equilíbrio. Não tenho vontade de voltar para casa – você não estará lá e mais uma tarde quente, monótona e triste vai chegar. Farei meu almoço, porei as roupas para lavar, tentarei dormir um pouco no sofá mesmo… nossa cama traz lembranças demais pra mim. Tudo traz lembranças demais pra mim!
Sinto-me desconfortável no apartamento que um dia foi nosso, mas também não tenho vontade de ir para a rua. Cinemas, livrarias, exposições de arte, cafés… tudo isso que sempre foi um passeio muito agradável não me atrai hoje. A tarde está pesada, já são mais de dez dias nesse ritmo. Não quero apelar para o álcool, nem para antidepressivos. Vamos ver por quanto tempo aguento firme…
Pego no sono deitado no sofá. A televisão ligada para as paredes, como dizia minha mãe. Olho o relógio e são quase 5h da tarde. O céu ficou escuro, começa uma ventania, ainda sem a chuva, e vou à área de serviço estender as roupas que estão na máquina. Tarefas simples que vão consumindo meu tempo. Isso e a lembrança daquele dia terrível, meu Deus!
O telefone toca, vou atender. É a advogada. Com uma voz formal, um tanto protocolar e profissional demais para meu gosto, ela me cumprimenta e eu retribuo o seu “boa tarde”. Ela me pergunta como estou indo… respondo que “estou indo”. Depois das formalidades iniciais, ela me dá a notícia:
– O delegado quer que o senhor vá amanhã à delegacia. Eu explico: os cinco homens suspeitos de lincharem, por homofobia, seu companheiro até a morte no sábado de Carnaval foram capturados. O senhor precisa ir até lá fazer o reconhecimento.
Digo que irei e agradeço. Desligo o telefone, sento no chão e choro muito. Você não está aqui. Você nunca mais estará aqui…
É um pesadelo que parece não ter fim.
3 Comments
A reflexão proposta por essa crônica atinge em cheio a nós leitores não só, infelizmente, pela atualidade do tema – intolerância, preconceito, falta de humanidade etc – , mas também pela emoção dolorosa que ela provoca.
Excelente texto.
Obrigado!
Vivi na pela o que a ausência de um companheiro nos faz, triste isso. Por outro lado, a intolerância, preconceito com o próximo ainda imperam.
Me sinto repetitiva lendo suas lindas crônicas, mas não fujo , adoro suas histórias, seus detalhes, consigo sentir até sua respiração, continua escrevendo, obg.