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SEMELHANÇAS

Novamente, a humanidade passa por um período de medo, receios e dúvidas. Em certos casos, olhar para trás pode nos auxiliar e nos orientar quanto a acertos e erros já cometidos.

 

SEMELHANÇAS

 

Há alguns dias, eu conversava com amigos – via Whatsapp – e todos concordávamos sobre como o atual cenário da Covid-19 faz lembrar o início dos anos 80. Grupo formado por cinquentões, todos nós temos idade para recordarmos de como foi a chegada de Aids ao Brasil no começo daquela década.

       Assim como hoje, pouco se sabia sobre a doença e, em decorrência disso, havia um pânico generalizado e justificável: o que fazer contra um vírus, um inimigo invisível que pode estar ali, ao nosso lado, sem que tenhamos conhecimento?

       Presenciei algumas cenas que me marcaram bastante em 1984, 1985 e em alguns anos posteriores. Lembro de um dia estar num ônibus lotado – a gente ainda entrava pela parte de trás e saía pela porta da frente – quando um homem se levantou deixando um pouco de marcas de suor no encosto do banco. Lembro que ninguém, absolutamente ninguém se atreveu a se sentar no lugar vago – e se o vírus da Aids fosse transmitido pelo suor?

       Está clara na minha memória a conversa que ouvi, certa vez, num elevador de uma repartição pública do centro de São Paulo. Duas mulheres conversavam ao meu lado e um delas falava: “Dizem que lágrima e saliva também transmitem HIV. Que coisa!”. E muita gente evitou, por muito tempo, apertos de mão, abraços, conversas mais próximas de seu interlocutor, bem como evitaram-se também banheiros públicos, mesas de restaurantes e copos e talheres de bares e lanchonetes. O medo é uma coisa muito poderosa!

       Hoje, as pessoas caminham nas ruas (as poucas que se aventuram em plena quarentena) com cabeças baixas, olhares desconfiados, fisionomias tristes e até um tanto hostis. A dúvida se mistura ao medo que se mistura à prevenção que se mistura ao distanciamento e por aí vamos. São dias um tanto tristes estes que estamos vivendo.

       Não posso deixar de falar do preconceito e da intolerância que nascem do instinto de preservação e muitas vezes da ignorância. A notícia de que profissionais da saúde têm sido hostilizados me choca e me deixa perplexo: são pessoas que, por dever do ofício, estão se expondo continuamente à contaminação. São obrigados a se paramentarem como verdadeiros astronautas, trabalham horas e horas em contato com a morte, num ambiente tenso e muito triste. Tudo isso para serem maltratados pelos “respeitados cidadãos” do lado de fora de hospitais. Já vi esse filme: durante o pico da Aids, isso também acontecia.

       Tive oportunidade de escrever em outra crônica sobre  a Aids ser conhecida como “o câncer gay” e ser rotulada como “um castigo divino” que veio “para matar os homossexuais promíscuos”… e então começaram as mortes de crianças, mulheres, idosos e percebeu-se que a doença afetava todo e qualquer ser humano.

       Penso que não somos evoluídos o bastante para que a compaixão supere nossos preconceitos. Como eu disse, o medo é uma coisa poderosa e ele pode nos levar a ações e posturas irracionais das quais podemos nos arrepender mais tarde.

       Se a pessoa “soropositiva” sofria preconceitos no trabalho – e, portanto, a Aids tinha suas implicações econômicas e sociais -, o mesmo tem ocorrido com a Covid-19. Tenho recebido vídeos e mensagens via Whatsapp de grupos antagônicos: uns acham que o comércio tem de ser reaberto; ouros acham que isso é loucura, pois a vida é mais importante que o dinheiro… mas como manter a vida sem o dinheiro que a sustenta? Dilema de famílias humildes, numerosas e carentes de tanta coisa!

       Presenciamos um mundo antes do HIV e outro depois desse vírus; estamos presenciando mudanças comportamentais durante a pandemia do Covid-19, forçadas pelas circunstâncias, é lógico. O que vai acontecer depois que isso passar é um mistério ainda.

       Fico apenas com medo de que o tempo ajude a esquecer tudo isso e, como no caso do HIV, as pessoas joguem para debaixo do tapete todo o horror que se viu há menos de quatro décadas.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

11 Comments

  1. VERONICA MUCURY disse:

    Exatamente meu amigo, período delicado se repetindo.

  2. Clarice keri disse:

    Boa crônica e, só nos resta ter a esperança de que quando tudo isso passar alguma coisa boa ficará entre nós.

  3. Shirleyne Diniz disse:

    Bom momento que vivemos para a reflexão. Obrigada pela contribuição.
    Gostei também da auto definição: Ariano.

  4. Anna Maria disse:

    Muito bom. Parabéns! Realmente no início da AIDS lembro dos médicos na tv falando que não se transmitia AIDS pelo abraço…as pessoas tinham medo de abraçar e pegar a doença.

  5. Bernadete disse:

    Ótima crônica! Uma análise perfeita desses tempos sombrios .

  6. Selma Pavone disse:

    Sensacional!!!! Adorei sua crônica!!!
    É bem isso… o medo é poderoso e a ignorância mata.

  7. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Ontem como hoje a ignorância está ao alcance de todos. É muito fácil julgar, estigmatizar, discriminar, quando não se tem um mínimo de amparo cultural para se entender quem somos ou onde estamos.
    Parabéns pelo texto. Excelente como sempre
    Grande abraço.

  8. Baltasar Pereira disse:

    Esta Crônica levou-me novamente a década de 80 e lembrei quando assistia TV as imagens tristes sobre as mortes devido o HIV e quando ainda associavam a AIDS como sendo a Peste Gay. Tudo muito triste,mas o Tempo,somente o Tempo foi mostrando que o Preconceito a nada levava bem como mostrou que o exaustivo trabalho de Médicos, Enfermeiros, Técnicos de Enfermagem e Pesquisadores foi importante para mudar aquela Situação e Visão sobre as pessoas e a própria doença.

    Novamente estamos vivendo uma Pandemia em proporções Mundias nunca por mim vista.

    Vamos ver como vamos sair desta.

    Como sempre adorei esta Crônica e a visão que nos trouxe de duas Épocas diferentes e momentos bem difíceis.

    👏👏👏

  9. Nirley Mescolotti disse:

    A desinformação é a janela para o medo! A morte pode ser consequência da gnorância !

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