WILLIAM HOLDEN
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DIREITO À FELICIDADE

       São 13h30 de uma quinta-feira ensolarada. Os universitários inundam a calçada da rua Maria Antónia no horário de sempre – alguns falam ao celular, outros apenas o olham à procura de mensagens; muitos estão com suas namoradas e namorados, alguns formam rodinhas e discutem as aulas de hoje, as provas de amanhã, onde poderão se reunir para as discussões em grupo, e outros tantos jogam suas mochilas nas cadeiras dos bares para a dúzia de cervejas que vão tomar nas próximas duas ou 3 horas… uma tarde típica na famosa rua repleta de jovens, bares, papelarias e estacionamentos. Tudo gira ao redor da conceituada universidade.

       Pedro Ernesto Siqueira Sampaio Neto é um rapaz de 19 anos, 1,65 m de altura e mais de 100Kg. Movimenta-se como um paquiderme por entre os outros estudantes na saída da aula. Faz Direito, está no segundo ano e não teve opção: deverá herdar o escritório de advocacia que foi do avô e que agora é do pai. Pedro Ernesto já trouxe do berço a obrigação da sucessão – o “Neto” do seu nome carrega uma responsabilidade enorme de dar continuidade ao nome da tradicional família de Higienópolis. Pedro Ernesto nasceu para ser o herdeiro, nasceu para continuar o nome e a tradição que vêm de seu avô. Pedro Ernesto, ninguém da família duvida, será um brilhante advogado!

       O sol forte faz o rapaz suar demais. Os “amigos” o convidam, só por “zoeira”, a juntar-se ao grupo que tomará umas cervejas antes de ir pra casa almoçar e dormir a tarde toda.   Quer dizer, eles vão dormir, pois Pedro Ernesto cumprirá o ritual de sempre: chegará ao apartamento de 600 metros quadrados, será recepcionado pela antiga babá – que ainda trabalha pra família – tomará um banho e almoçará para, depois, começar a estudar para as provas da semana que vem. Pedro Ernesto é um excelente aluno, exemplo para todos. O querido discípulo dos mesmos professores que deram aula para seu pai 30 anos atrás.

       Pedro Ernesto não aceita o convite, pois sabe que ninguém ali quer a sua companhia. No máximo, vão continuar o bullying iniciado em sala de aula e ele será, de novo, ridicularizado pelo peso, pelas roupas sérias demais que usa (sempre em tons pastel), pelas notas 10 que tira, pelo fato, enfim, de não ser “como os rapazes de sua geração”. Pedro Ernesto é diferente em tanta coisa!

       Na classe, são muitos os que o invejam por já ter ” estágio e emprego garantidos no escritório do vovô e do papai”; outros, por isso e também por sua condição financeira conhecida pela faculdade toda. Assim, é alvo fácil para brincadeiras de gosto duvidoso que mais humilham do que divertem. Divertir, mesmo, só à turma que vê nele um motivo certo de risadas.

       Já perdeu as contas dos dias em que se sentiu solitário demais, deslocado demais, diferente demais. Já perdeu as contas das tardes e noites em que, trancado em seu quarto, não recebeu sequer um “boa noite” do pai ou da mãe chegando dos respectivos escritórios – ele, claro, advogado; ela, dentista. O rapaz de 19 anos lê, ouve música, fica no “face” vendo as fotos que os meninos e meninas postam, todos alegres, sorrindo, bebendo, curtindo a vida do modo como ele também gostaria… mas não consegue.

       Primeiro, porque Pedro Ernesto é apaixonado por um garoto de sua sala – o mais bonito, o mais popular, o que sai com todas as meninas e nunca imaginaria que o rapaz obeso o observa e o ama e o deseja e sonha com ele. Pedro Ernesto tenta a todo custo ser discreto, passar quase despercebido. Na maioria das vezes, dá certo. Ninguém o nota e isso contribui para sua timidez e quietude. Se ao menos tivesse uma irmã, talvez pudesse conversar com ela sobre tantos assuntos! Ela seria sua confidente. Ela seria sua amiga…

       Naquele começo quente de tarde, Pedro Ernesto toma a direção oposta do pessoal da classe: enquanto eles andam em bando para o bar, ele vai sozinho em direção ao enorme apartamento,  ricamente mobiliado, a passos lentos, como quem não tem vontade de chegar e passar a mesmíssima tarde de todo santo dia. Quanto peso carrega o rapaz! Enquanto caminha, lembra-se das gozações dos colegas toda vez que ele responde uma pergunta em classe. Lembra-se dos apelidos ditos à boca pequena, nada originais, mas que magoam e dão vontade de chorar. E essa dor no peito de quem ama e não pode dizer nem para si mesmo como é esse amor. Pedro Ernesto não aguenta mais guardar isso sozinho.

       Em casa, à noite, ouve a porta bater uma, duas vezes com um intervalo de 20 minutos contados no relógio. Primeiro, chega o pai; depois, a mãe. Exaustos, como sempre, começam a conversar na sala, enquanto bebem e relaxam no sofá. Pedro Ernesto não tem vontade de sair do quarto. Os pais não demonstram vontade de ir até ele… Depois de mais ou menos umas duas horas, Pedro Ernesto irá até a sala, dará um beijo na mãe, outro no pai, e saberá o que os dois estão planejando para o fim de semana. Certamente, alguma coisa muito, muito chata da qual o filho preferiria ficar de fora. O problema é que “ficar de fora” significa mais tempo sozinho dentro desse apartamento… Pedro Ernesto pensa nisso e chega à conclusão de que prefere ficar sozinho a visitar esses casais medonhos, amigos de seus pais.

       No dia seguinte, o mesmo ritual na porta da faculdade: o pessoal vai pro bar, agora sem hora pra parar, pois é sexta-feira, dia da cervejada, da farra completa, da esticada, do dormir um na casa do outro, principalmente quando alguém está sem os pais que viajaram e deixaram o apartamento à disposição do filho. Farra total! Pedro Ernesto ouve os convites, que não são dirigidos a ele, claro. Ele ouve e se cala. Ele ouve e guarda para si a vontade de se juntar aos “amigos”.

       Há muito que Pedro Ernesto se satisfaz sozinho pensando no bonitão da classe. Diariamente, masturba-se no chuveiro de seu banheiro particular sob o qual passa horas tomando banho. Não há ninguém em casa que possa incomodá-lo… então, goza sob a água pensando no corpo do rapaz que tira seu sono e lhe dá vontade de chorar. Pedro Ernesto jamais será capaz de se declarar, mesmo porque isso seria ainda pior em se tratando dele.

       Por volta de 10h da noite, os pais saem para uma pizzaria e perguntam se ele quer acompanhá-los. Diante da negativa, perguntam se ele quer que lhe tragam algum pedaço da pizza. Diante de nova negativa, a mãe dispara certeira: “Melhor mesmo, está precisando de um regime, Pedro Ernesto…”. Ele finge que não ouve, mas dói do mesmo jeito.

       Com o celular, tirou uma foto do rapaz quando ele estava distraído do outro lado da rua na porta da faculdade. Na verdade, tirou várias, mas com muita discrição, pois seu segredo não pode ser revelado a ninguém. O fato é que gosta cada vez mais do outro, pensa cada vez mais no colega de classe e não sabe como lidar com isso. Sua única saída é masturbar-se e imaginar que o outro está nu ao seu lado, de corpo inteiro, malhado, à sua disposição, dele,  Pedro Ernesto.

       Naquela noite de sexta-feira, sozinho no banheiro, enquanto enxuga o corpo acima do peso, exagerado para um rapaz de 19 anos, Pedro Ernesto Siqueira Sampaio Neto, o futuro advogado que carregará adiante o nome do avô e do pai nos tribunais da cidade, olha-se no espelho e não sente nada – nem pena de si mesmo. Um nada capaz de tudo. Um vazio enorme que nunca ousou dividir com ninguém. E, depois, uma angústia terrível, uma dor quase física a torturá-lo. A dor da solidão.

       Vai à cozinha e pega uma faca. A noite lá fora está estrelada, bonita, quente, repleta de carros nas ruas, namorados tomando sorvete, bebendo dúzias de cervejas, transando e aproveitando sua juventude. Pedro Ernesto, alheio a tudo isso (ou consciente de tudo isso de que não faz parte), volta ao banheiro, olha-se novamente no espelho com a faca na mão. Passa suavemente sua lâmina pelo pescoço e, depois, pela barriga, pela enorme barriga, motivo de tanta humilhação na faculdade. Ele é a antítese do bonitão da classe – em todos os sentidos.

       Pedro Ernesto tem uma ideia ótima para aliviar tudo isso. Uma ideia para não mais sofrer, não mais pensar, não mais ter de seguir um curso que sempre odiou e uma profissão que, na verdade, odiará. A vontade latente de dizer ao pai que não quer ser advogado. Não quer levar a vida que outros levaram antes dele. Detesta a ideia desde que estava no cursinho.

       Pedro Ernesto pensa na possibilidade de se sentir feliz, definitivamente feliz. Continua alisando a barriga com a faca pontuda. É tomado por um tesão que não sabe de onde vem, ou melhor, sabe de quem vem e por que vem. Sente uma ereção e olha a foto do outro no celular. Pedro Ernesto precisa se aliviar… e o faz! Pela terceira vez, hoje, goza muito pensando no garoto bonitão da faculdade. Aliviado, sente-se cansado demais de tudo.

       Tem vontade de dormir, de fechar a porta do quarto e dormir muito.

       Vai à cozinha e guarda a faca na gaveta. A ideia que teve é boa, pensa. Quem sabe um dia desses! Quem sabe, num dia desses, consegue se libertar da vida e de tanta coisa que não aguenta mais carregar!

       Diante dessa possibilidade, deita-se sorrindo e cai num sono profundo…  entre caríssimos lençóis de seda dourada e elegantes fronhas bordadas à mão.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Clarice keri disse:

    Adorei , e consigo imaginar um final. Obrigada Vitor.

  2. Aurélio disse:

    Pedro Ernesto, o pobre menino rico; quantos, como ele, não há?

    Mais um texto que nos emociona a nós leitores!

    Obrigado, Professor.

  3. Bernadete disse:

    Maravilhoso. E muito triste. A vida como ela é.

  4. Baltasar Pereira disse:

    Dá para sentir a angústia que o personagem Pedro sente desde as “brincadeiras infelizes de seus colegas de Curso até o desejo que não quer assumir pelo seu colega de classe.
    Lendo a Crônica conseguimos sentir as angústias de sua Vida em casa e a Solidão de Amigos e Amores que não consegue ter naquele momento de sua Vida.
    Bela Crônica.
    Triste Vida de um jovem que vai conseguir passar por tudo isto, talvez não exatamente como imaginaria.
    👏👏👏👏

  5. Que angústia desse rapaz! Queria ser feliz, apenas. Na minha época do colegial, eu era apaixonado por um rapaz, nem contato eu tinha com ele, estudávamos na mesma escola só que em classes separadas. Pra minha surpresa um belo dia fui apresentado ao moço. Chama-se João Luiz (Lemão), tenho amizade até hoje, a paixão foi passageira, coisa de “aborrecente”.

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