PARA NELSON RODRIGUES
“No mundo, encontramos mais frequentemente lições que conforto” – Georg Lichtenberg, filósofo e escritor alemão do século 18.
Doutor José Pedro de Alcântara é um respeitado advogado cujo nome é sempre lembrado por aqueles que precisem de um profissional competente na área do Direito Empresarial e que possam pagar altos honorários.
Homem de 68 anos, casado, pai de três filhos – dois rapazes e uma moça -, tem fama de ser conservador e austero. Bom pai, ainda que extremamente autoritário, sabe fazer valer sua condição de patriarca. Veio do interior estudar na São Francisco/USP e nunca mais quis voltar à sua cidade natal. A mulher lhe é extremamente submissa, submissão advinda do sentimento de gratidão que sente pelo marido que a tirou da pobreza e lhe mostrou uma vida de conforto antes impensável. É grata a ele, gratidão que vem antes do amor.
Ele tem orgulho dos filhos: Marco Aurélio, o mais velho, de 30 anos, formou-se em Economia e conseguiu sucesso na profissão; está casado, acabou de ser pai, e doutor José Pedro não se aguenta de alegria com o primeiro neto. Marco António é o do meio: tem 26 anos, formou-se em Odontologia, tem consultório próprio e ainda mora com os pais, já que é solteiro. Solteira também é a caçula e xodó de José Pedro: Maria Cecília, uma linda moça de 23 anos que, no próximo mês, irá para Florença, onde ficará por dois anos estudando História da Arte.
Nesta noite, doutor José Pedro foi ao aeroporto buscar um cliente de Porto Alegre. A chegada do voo estava marcada para as 21h, mas o avião só foi pousar às 22h30 por causa do mau tempo na capital gaúcha. Um tanto irascível, doutor José Pedro propôs que eles comessem e conversassem num restaurante, pois, àquela hora, a família já devia ter jantado havia muito tempo. O cliente concordou e os dois foram para um bom restaurante italiano nas imediações da avenida Angélica. Restaurante cheio, demorou para conseguirem uma mesa.
Depois de falarem muito e comerem na mesma proporção, o advogado ofereceu-se para levar seu cliente ao hotel em que ele ficaria hospedado pelos cinco dias seguintes, ou seja, durante sua estada na capital paulista. Era uma noite de sexta-feira e, como o hotel ficava na região dos Jardins, tiveram que enfrentar um certo trânsito, pois já passava da 1h da manhã. Descendo uma das ruas que dão acesso à rua Estados Unidos, foram pegos num engarrafamento em frente a uma boate cuja fila de entrada quase dava a volta no quarteirão.
Isso piorou o humor do doutor José Pedro. Dirigindo-se ao cliente, disse que achava aquilo um absurdo! Não havia mais homens no mundo, só homossexuais, pessoas sem vergonha na cara, despudoradas, um acinte para a sociedade e para os cidadãos de bem. Sentia pena dos pais dessa gente, embora eles também tivessem sua parcela de culpa por não saberem educar seus filhos e deixarem que tomassem esse rumo na vida!
Sentiu nojo daqueles meninos com cabelos coloridos, camisetas apertadas, tatuagens pelo corpo, afeminados… por ele, poderiam morrer, pelo menos os pais não sentiriam mais vergonha por tê-los posto no mundo. Sua ira provocou um desconforto no cliente, mas este soube contornar a situação e procurou acalmar o outro como pôde. Seguiram para o hotel.
José Pedro tomou o caminho de casa. Precisava tomar um banho e cair na cama. O celular tocou, era a amante que se dizia com saudade. José Pedro, irritado, disse que não podia, estava cansado, ligaria na segunda-feira. Desligou e jogou o aparelho no banco do passageiro. Ao chegar à porta do apartamento, num luxuoso prédio, foi surpreendido pelo filho. Marco António se despedia de um de seus colegas do tempo da faculdade, conhecido pela família. O velho cumprimentou o rapaz que estava saindo e convidou-o para ficar mais um pouco, contudo o jovem disse que já estava tarde e que voltaria noutra hora, com mais tempo.
Assim que entrou, notou alguma coisa no ar, um clima tenso, de apreensão geral estampada no rosto da esposa e dos filhos, Marco António e Maria Cecília. Largou a pasta sobre o sofá como quem larga um fardo e se livra do dia cheio. Aquele havia sido um dia muito cheio! Começou a falar. O escritório com seus problemas, a ida ao aeroporto lá no fim do mundo, o atraso do voo, o restaurante lotado, o congestionamento na volta e, mais que tudo, a irritação homofóbica sobre a qual ele não possuía controle. Ao notar que os três o olhavam quietos, foi natural que perguntasse qual era o problema.
A esposa, tentando aliviar a tensão, foi a primeira a falar. Disse que sentia muito terem aquela conversa àquela hora da noite, ela não queria, mas o filho insistira. Doutor José Pedro logo pensou numa tragédia com o filho mais velho ou com neto… Não! Tudo estava bem com Marco Aurélio, a nora e a criança. Então, o que estava acontecendo, pelo amor de Deus?
Marco António dirigiu-se ao pai. Começou dizendo que tinha algo muito importante para lhe dizer e que, depois de muito pensar, resolvera agir. E, pela primeira vez na vida, ainda que com 26 anos, pela primeira vez na vida havia tomado uma coragem que nem ele mesmo conhecia, para olhar bem nos olhos do pai e falar. Disse-lhe que estava saindo de casa para morar num apartamento, pois não aguentava mais a autoridade e a austeridade do velho. Disse-lhe que era grato por tudo o que José Pedro havia lhe feito, pela sua criação e educação, mas, apesar de tudo, sua saída era coisa resolvida e inadiável. Já escolhera um apartamento e precisava de independência, sem horários de entrada e saída, sem o controle que o pai exercia sobre eles todos. Aquilo era sufocante!
José Pedro soltou o corpo ainda mais em sua poltrona predileta e sorriu. Desatou a gravata e disse que não via motivo para tanto drama, pois sair da casa dos pais é um processo natural para um adulto. Até achava que isso tinha demorado muito por parte do filho. Tanto drama e tensão por causa daquilo? Eles eram uns exagerados… e não se achava assim tão autoritário. Que coisa!
Sem sorrir, aparentando o peso de tantos anos de medo e tensão, o rapaz olhou fixamente o pai, ali sentado como um rei diante de sua corte, e levantou a voz. Um espantado e atônito José Pedro ouviu o seguinte de seu filho do meio:
– Pai, chega de mentira! Sou gay e aquele que você viu saindo daqui agora há pouco é a pessoa que eu amo e sempre amei. Somos namorados desde os tempos da faculdade e vamos morar juntos. Não me interessa o que você pensa ou possa fazer. Chega! Chega de o doutor José Pedro dizer como tenho que viver minha vida. Vou ser feliz ou infeliz, mas vou viver minha vida. E do lado da pessoa que amo – exatamente como você fez quando se casou com minha mãe. Também tenho esse direito…
O ódio cresceu dentro do velho e doutor José Pedro ainda quis falar alguma coisa. Percebeu que seria inútil quando viu o filho saindo pela porta da frente em direção ao elevador. Apesar de estarem na sala a esposa e a filha caçula, Marco António deixou o pai numa completa, profunda e irremediável solidão – a solidão que somente os estúpidos, intransigentes e radicais podem sentir.
4 Comments
Bonita história, “intransigência” é sempre assunto pra uma boa discussão, obg.
Linda crônica, meu amigo! Parabéns mais uma vez . Abraços, Bob
Ótima crônica. O pior é que os intransigentes e radicais continuam por aí, achando que são donos da verdade e das vidas de quem não é igual a eles.
A Vida como ela é realmente. Todos escondemos dentro de nós segredos e desejos ,mas chega uma Época que muitos não aguentam e acabam se mostrando como são ou acabam vivendo e fazendo as escondidas os mais secretos desejos.
Bela Homenagem a Nelson Rodrigues.
Bela Crônica.
E, o final mostra um Homem que acabou de ver ruir a Vida da Família estilo Margarina que em sua imaginação e preconceito existia.
👏👏👏👏