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A DISTÂNCIA

                                                               São Paulo, 20 de dezembro de 1980.

Meu querido Paulo,

                  Você está bem?

                  Não se surpreenda demasiadamente com as linhas que seguem. Elas são uma simples prova de que não o esqueci – na verdade, quero que elas lhe digam que não deixei de pensar em você um dia sequer depois de nossa despedida há um ano e meio. Como você me disse que entraria em contato comigo, fiz um exercício intenso de paciência e me contive para não tentar obter notícias suas de forma abrupta.

                  Ainda está muito vivo em minha memória aquele dia em que nos encontramos no ônibus, em plena avenida Paulista, num dia frio de junho, perto do Dia dos Namorados… você se lembra? Ainda posso vê-lo fechando seu guarda-chuva assim que o ônibus parou no ponto e você, rapidamente, subindo e tentando pegar o mínimo de chuva possível. Você estava tão elegante de terno e gravata, cabelo penteado, cavanhaque cheio, que logo chamou minha atenção. Torci para que você ficasse parado ao meu lado, pois assim eu poderia segurar sua valise e seu guarda-chuva. E fui feliz no que desejei!

                  Você agradeceu meu gesto com um sorriso e, quando vagou um lugar ao meu lado, você se apressou em ocupá-lo. Ainda me lembro de que você tomou o ônibus no ponto do Conjunto Nacional rumo ao Aeroporto de Congonhas. Conversamos sobre amenidades, mas ambos puderam notar que havia alguma coisa no ar, como um assunto que se adia e se protela até não se poder mais. Acho que seus olhos falavam mais do que sua linda boca.

                  Sua perna encostou na minha de leve e, quando não sentiu rejeição, forçou ainda mais o contato. Mais tarde, confessei a você que eu estava excitado – daí o fato de não tirar meu casaco de cima de minhas pernas. Fomos conversando por toda a Paulista, observando carros, pedestres, guarda-chuvas coloridos, ônibus, prédios, casas e escolas. Você me disse que não era daqui, que estava na cidade para um estágio de Arquitetura no escritório de um tio. Perguntei por quanto tempo. Você me disse, com cara triste, que seriam somente três meses.

                  Eu tinha de fazer alguma coisa para não o perder de vista. Meu ponto ficava bem antes do seu, de modo que eu deveria saltar primeiro. Lembra-se da desculpa que arranjei para lhe dar meu telefone? “Se quiser conhecer melhor a cidade, se precisar de um guia, é só ligar!”. O que você fez naquela mesma noite…

                  Nosso primeiro encontro, num restaurante da Alameda Santos, foi estranho. Prazeroso, mas estranho. Eu nunca havia me interessado por um rapaz tão jovem – 25 anos me parecia uma idade fora de cogitação. Sempre acreditei que os homens estavam “prontos” somente depois dos 30, ao contrário das mulheres, que amadurecem bem antes disso. Ainda assim, Paulo, você me surpreendeu. Lembra-se de que nossa conversa foi até a 1h da manhã e que quase nos puseram pra fora do restaurante?

                  Eu o convidei para ir até minha casa. Você, sabiamente, recusou. Digo “sabiamente” porque, ironicamente, eu, o mais velho dos dois, estava pra cometer o erro básico da precipitação. Veja só: um homem de 45 anos caindo num erro primário desse. (Minhas palavras não me convencem: eu o convidei porque adorei sua companhia e pensei que dormir agarrado a você seria o ideal numa noite fria e chuvosa como foram todas as noites daquele mês de junho.)

                  Nosso envolvimento não demorou muito. Depois de uma semana de telefonemas, encontros irregulares em restaurantes e cafés, passamos a nos ver diariamente – e essa era sempre a melhor hora do dia para mim. Finalmente, você veio ao meu apartamento. Nosso primeiro beijo foi demorado, intenso, sem a pressa característica daqueles que não podem se aprofundar no que fazem, pois não sabem por que fazem. Aquela foi a noite do primeiro beijo, da primeira pizza, do primeiro vinho, do primeiro banho juntos, da primeira transa. Quase não dormimos a noite inteira. Alternávamos sexo com conversa sobre cinema, livros e músicas. Quando você me disse que gostava de “Crying”, com Don McLean, uma antiga canção de Roy Orbison, guardei aquilo na cabeça. No dia seguinte, é claro, fui até a loja e comprei o LP pra você. Ele ainda existe?

                  De vez em quando, ainda percorro alguns lugares que frequentávamos juntos – cinemas, restaurantes, livrarias, lojas de discos, de roupas, de sapatos. Caminho lentamente sob a chuva fina tão típica de São Paulo e fico olhando para pontos de ônibus na esperança de encontrá-lo e ver seu rosto novamente. Compreenda que são maneiras de ter você outra vez.

                  Por aqui, ainda guardo a foto que tiramos juntos no Parque Ibirapuera e me pergunto se vou ver esse sorriso novamente, se um dia eu o verei novamente, meu querido. Foram tantos momentos bonitos e intensos naqueles 90 dias que você passou ao meu lado, que estou fazendo força para não chorar enquanto escrevo, olhando sua fotografia. Nesta época do ano, ficamos mais sensíveis, eu acho. Interrompi os cartões de Natal e joguei-os na gaveta. Não estou com inspiração para isso – difícil ficar desejando felicidade para os outros quando a sua própria não está ao seu alcance…

                  Ontem, me animei um pouco e montei minha árvore de Natal com alguns amigos. Ela está tão linda que só vendo! Um pouco de alegria nesta casa que ficou bastante cinza sem você, Paulo. Espero que goste do livro que estou mandando. É um pequeno presente, mas que vai com muito carinho, você sabe. Lembra-se de que lhe falei dos contos da Lygia Fagundes Telles? Aí vão alguns para o seu Natal.

                  Lembro-me do dia em que eu lhe disse o quanto você me fazia feliz e de como seus olhos azuis ficaram cheios d´água, um tanto misteriosos, tímidos, mas lindos! Você tem uma tristeza que me despedaça um pouco o coração.  

                  Sinto saudade, menino bonito. Saudade do seu cheiro, saudade da sua voz, saudade de você. E isso dói! Não quero lembrar o dia de nossa despedida. Acho que o melhor presente de Natal que eu poderia ganhar seriam palavras suas numa folha de papel trazida pelo carteiro. Veja que nem peço um telefonema! Mande-me notícias, diga-me que está bem, conte-me um pouco de sua vida. Sobretudo, deixe-me saber que você não me esqueceu.

                  Tenha um Feliz Natal, meu amor. E que o ano de 1981 lhe traga o dobro da felicidade que você um dia me trouxe.

                  Ainda seu,

                                                                                 Pedro

                                           * * * * * * * *

                                                                Londrina, 5 de janeiro de 1981.

Senhor Pedro,

 

                  Em resposta à sua carta de 20 de dezembro, sinto ser portadora de más notícias.

                  Primeiramente, permita que eu me apresente: meu nome é Márcia, tenho 24 anos e estive casada com Paulo. Nós nos conhecíamos desde 1975, quando estudamos Arquitetura juntos e começamos a namorar. Ele estava com 20 anos, e eu, com 19.

                  Ainda não pude avaliar direito o efeito de sua carta sobre mim. Como vê, pelas datas que lhe forneci, Paulo era meu noivo quando foi a São Paulo e por aí passou três meses trabalhando no escritório do tio. Eu,  depois da faculdade, desisti de Arquitetura e comecei a trabalhar com minha família, no ramo de gado de corte.

                  Não sei bem, pra falar a verdade, como continuar essa carta. Não sei nem se devo continuar a escrever para o senhor que, como eu, não tinha consciência do que acontecia na vida de meu então noivo. O fato é que ele passou três meses na capital sempre telefonando e escrevendo, dizendo que tudo estava bem, que o estágio estava dando certo e que os entendimentos com o tio progrediam dia após dia. Eu sentia em sua voz uma certa melancolia, que eu interpretava, à época, como saudade e desejo de voltar à sua terra. Hoje, já não tenho certeza – acho que a tristeza de sua voz era causada por ter de voltar para uma vida à qual ele não pertencia mais.

                  Paulo sempre foi mais introspectivo do que eu. Arrancar-lhe um desabafo era tarefa para poucos e, infelizmente, nunca consegui sondar profundamente a alma de meu marido. Depois de sua volta, foram muitos os momentos de silêncio e olhar perdido no horizonte que pude perceber por parte dele. Quando eu perguntava o que estava errado, ele simplesmente desconversava e mudava o rumo da prosa.

                  Os dias foram passando, e finalmente retomamos nossa rotina de noivado e, depois, casamento. Senhor Pedro, esse foi o dia mais feliz de minha vida. Nossa cidade poucas vezes viu uma cerimônia tão bonita e com tantos convidados. Paulo e eu estávamos lindos, juntos no altar, ouvindo as bênçãos do padre e jurando união até que a morte nos separasse. Minha esperança era que Paulo voltasse a sorrir, que voltasse a ser o rapaz, embora quieto, feliz dos tempos de faculdade.

                  Nós nos casamos no Dia dos Namorados, um sonho antigo que tínhamos desde os tempos em que matávamos aulas para namorar na lanchonete da faculdade de Arquitetura. Nossa lua-de-mel foi maravilhosa… bem, essa face de Paulo o senhor já deu a entender que conheceu.

                  Estranhos desígnios tem essa vida, senhor Pedro. Paulo não ficou casado comigo mais do que quatro meses, pois faleceu num acidente automobilístico terrível quando voltava de Cuiabá, no Mato Grosso. Minha vida com ele foi abreviada por essa tragédia, mas hoje não sei se eu o tinha perto de mim. Sua carta veio elucidar o comportamento diferente de Paulo depois da viagem dele a São Paulo.

                  Suas palavras dão conta de dias muito felizes que passaram juntos. Dias de chuva, pizza, vinho, músicas, livros… antes de me ultrajar, sua carta me dá ciúme e inveja, pois eu talvez não tenha conseguido dar a ele tudo o que o senhor lhe proporcionou num tempo muito mais breve. Sua carta é, antes de tudo, uma resposta a tantas perguntas que me povoavam a mente e que, agora, parecem esclarecidas. Creio que Paulo o tenha amado, sim. Creio que o homem da minha vida tenha amado outro homem que soube mostrar-lhe quem ele verdadeiramente era.

                  Mantive o apartamento em que ele vivia antes de se casar, não me incomoda morar aqui, apesar de todas as lembranças que este lugar me traz. Fico mais na fazenda de meus pais. Contudo, senhor Pedro, peço que esqueça este endereço. Esqueça que um dia eu lhe escrevi estas linhas e que lhe contei tudo isso. Jogue esta carta fora, por favor.

                  Sei que estaremos para sempre ligados pela memória de Paulo, mas eu repito: esqueça-me, esqueça este endereço. Sua carta me trouxe a sensação de ter perdido pela segunda vez o homem que eu tanto amei.  

                  Tenha um Feliz Ano Novo.

                                                               Márcia Oliveira Guimarães

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Clarice keri disse:

    Linda história, me fez pensar que todos têm seu jardim secreto, aquele lugar que não dividimos , que guardamos nos sonhos, adorei, obrigada.

  2. Lindo o texto!
    Me lembrei do filme O Confeiteiro que narra a história de Thomas (Tim Kalkhof), dono de uma pequena confeitaria em Berlin. Thomas acaba se relacionando com um cliente, o empresário israelense Oren Nacmias (Roy Miller). Oren vive uma vida dupla, com a esposa Anat (Sarah Adler)………………………..
    Quem não assistiu. assistam

  3. Baltasar Pereira disse:

    Linda História de Amor e triste ao mesmo tempo.
    Gostei de Lembrar do tempo em que escrevíamos cartas e desta Época dos anos 80.
    Quanta beleza e ao mesmo tempo melancolia nesta história de Amor.
    No final todos os personagens sofrem e sofreram e o sentimento de melancolia estão em todos.
    Adorei .
    👏👏👏

  4. Nirley Mescolotti disse:

    Encontros estranhos e prazerosos! Quantas saudades de tantas coisas esses encontros vão deixando … Quantas histórias de Amor nascem de encontros como este…

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