HISTÓRIA RÁPIDA DE SAUNA
4 de novembro, 2020
UM LIVRO DE ADOLFO CAMINHA
17 de dezembro, 2020
Mostrar tudo

UM DISCO E UM VÍDEO

       Era o mês de maio de 1986. Eu havia sido convidado para a festa de aniversário de 30 anos de um amigo e, pela primeira vez, estaria em um ambiente repleto exclusivamente de homossexuais – em sua maioria, mais velhos do que eu. Não éramos amigos de longa data: na verdade, havíamos nos conhecido fazia pouco tempo, uma paquera que não levou a nada, a não ser a uma amizade bonita que durou enquanto ele esteve vivo.

       José Roberto morava sozinho, um sonho que eu tinha desde muito pequeno e que iria se realizar muito mais tarde. Bem, fui à tal festa, num apartamento no centro, rua Major Sertório. O tema da festa era “Música Disco”. Tudo para mim era novidade, eu não tinha amigos homossexuais e me senti num outro mundo, bem diferente daquele em que eu vivia no meu quotidiano.

       Meu amigo gostava de homens mais velhos. A festa estava repleta deles. A certa altura, sentou-se ao meu lado um homem de seus 55 anos e começamos a conversar. De repente, ele me perguntou: “Você não é muito novo para estar nesta festa, rapazinho?”. Eu tinha 22 anos. Hoje, dou risada disso.

       Bem, dormi no apartamento do Zé, mesmo porque não havia ônibus depois da meia-noite etc. Eram outros tempos, uma outra cidade de São Paulo, bem diferente da que temos hoje. No dia seguinte, fomos ver os presentes que ele havia ganhado. No meio de tudo, um LP(!) de um grupo inglês chamado “Bronski Beat”.

       Esse grupo era liderado pelo então jovem vocalista escocês chamado Jimmy Somerville, famoso por sua voz em falsete, mas, mais do que isso, por um clipe que não falava nada, e que dizia tudo. Nos dias pré-MTV e pré-internet, a moçada tinha de se contentar com os programas de clipes da TV aberta mesmo. E eram vários: Som Pop (na TV Cultura), Clip Trip (na Gazeta), FM TV (na Manchete) e Clip Clip (na Globo) entre outros. Ficávamos a postos para ver os clipes das músicas que ouvíamos no rádio. E, em quase todos esses programas, a emissoras passavam o vídeo de “Small Town Boy”, exatamente do Bronski Beat.

       Lembro da primeira vez que vi e não entendi direito – ou vai ver que eu tinha entendido “direito até demais”. No vídeo, conta-se a história de um rapaz – interpretado pelo próprio Jimmy – que vive numa cidade pequena (lógico!) com os pais. O clima na casa é meio sufocante; a hostilidade e a falta de paciência do pai para com o filho é bastante evidente; a superproteção da mãe, também. O rapazinho costuma ficar olhando um dos nadadores da escola com olhar de cobiça. Depois de um certo flerte no vestiário, esse nadador e seus amigos perseguem o rapaz e o espancam num beco. O rapaz, todo ferido, é levado pra casa por um policial. O clima só piora entre ele e o pai, culminando com a expulsão do moço.

       Na despedida, na porta de casa, o choro da mãe e a cara feia do pai, emburrado, contrariado, deixando claro que a expulsão do filho é inevitável. Ele põe a mão no bolso e dá dinheiro ao filho – o único gesto de que é capaz. Quando o moço estende a mão ao pai num sinal de despedida, o pai vira-lhe as costas e entra na casa. A cena é triste. No fim, o rapaz está no trem com os amigos, provavelmente indo para um grande centro, onde sua individualidade e seu anonimato serão respeitados. Isso não mudou de lá pra cá.

O vídeo fica entre o sutil e o explícito, por isso nem todo o mundo se deu conta, aqui no Brasil, do que ele abordava. Não estávamos acostumados a isso na TV. Não, naquela época.

Como eu estava começando minha vida gay, aquilo tudo ficou muito gravado na minha memória. Acho que ninguém prestou muita atenção ao vídeo nos “lares brasileiros”. A coisa passou meio batida e, ainda hoje, tenho amigos que não se lembram da música, nem do clipe, muito menos da situação narrada naqueles cinco minutos de filme.

Voltando à festa de aniversário do meu amigo e ao disco do Bronski Beat que ele ganhou, curiosamente na contracapa havia uma lista de uns 40 países, explicando como a homossexualidade era vista “de acordo com a lei” local. Pra nós, naquela época, aquilo era uma novidade completa. Nunca havíamos saído do país, os meios de comunicação não eram tão avançados como hoje, e cautela e discrição eram o melhor a ser adotado.

       Para nossa surpresa, havia alguns lugares do mundo em que gostar de alguém do mesmo sexo não era visto como crime – enquanto, em outros, a coisa era punida com prisão e morte em pleno século 20!  

Acho que foi o primeiro “clipe gay” que eu vi, mas posso estar enganado. (Três anos antes, por exemplo, Boy George já aparecia vestido de mulher no vídeo “Karma Chameleon”, do Culture Club, mas não era um clipe gay.) Fui rever o Bronski Beat há poucos dias – quem diria que teríamos isso na hora em que quiséssemos! – e tive a mesma sensação de melancolia que experimentei em 1985, quando o vídeo foi lançado. O clipe pode ser antigo; a situação não o é.

Mais tarde, muita gente abordou a questão “sexualidade e família”. De seu próprio modo e adotando um outro entrave, Madonna lançou “Papa don´t preach”, em 1987 – clipe no qual ela faz o papel de uma garota que vive com o pai (o ator Danny Aiello) e engravida do namorado. O fim deste, contudo, é mais feliz do que o de “Small Town Boy”.

       Muitos outros vídeos abordando a questão homossexual se seguiram ao longo dos anos. Mas, como diz a propaganda, o primeiro a gente não esquece.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

7 Comments

  1. Um disco pra mim, CHIC – Risqué , um vídeo Grace Jones I’m not perfect, but I’m perfect for you

  2. Clarice keri disse:

    Muito bom, como sempre, pra mim, o mundo precisa ler. Obrigada

  3. Aurélio disse:

    Com esse texto, viajo pela cena musical de parte da década de 80, aprecio as canções e sinto um quê melancolicamente nostálgico. Voltando para 2020, lamento que, em muitos lares, as famílias ainda expulsem os filhos gays e as filhas lésbicas.
    Belíssima crônica!

  4. Guilherme Sardas disse:

    Bela crônica, Vitão. Texto envolvente e sensível como sempre.

  5. Régis disse:

    Adorei! Nostálgica pela musicalidade e contemporânea pelos fatos.

  6. Bernadete Freitas disse:

    Crônica maravilhosa! Tantos anos depois e pouca coisa mudou! E o clipe é muito triste e muito lindo.

  7. Baltasar Pereira disse:

    Não me recordo deste vídeo deste grupo e lendo a Crônica isto me levou a curiosidade de ver.
    De qualquer maneira, o Tema do Vídeo é muito interessante e infelizmente continua muito atual.
    Fiquei curioso em saber mais sobre a primeira festa gay em que você foi convidado e o interessante é que a maioria eram pessoas mais velhas.
    Crônica gostosa de se ler.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *