“Se amo alguns livros, são aqueles em que sinto que o autor, que pode ter morrido há muitos séculos, se dirige a mim, pessoal e concretamente, a mim em confidência” – Miguel de Unamuno (1864 – 1936), romancista e poeta espanhol.
UM LIVRO DE ADOLFO CAMINHA
Adolfo Caminha foi um escritor brasileiro do século XIX, cujo livro mais importante é hoje pouco ou nada estudado na escola. Falo do “Bom Crioulo”, no qual o autor narra o romance homossexual entre Amaro (o crioulo do título) e Aleixo, uma relação de paixão e tragédia, ambientada no Rio de Janeiro.
Só pela data da escrita e pelo tema abordado pelo autor, o livro já deveria ser mais conhecido em tempos que se querem mais “livres”, com pessoas que “lutam por sua sexualidade” e que “não admitem mais serem confinadas a um gueto”. Penso que “sair do armário” com conhecimento e educação pode ser muito mais proveitoso aos jovens do que se imagina. Daí, a importância inquestionável da arte na formação de verdadeiros cidadãos.
Caminha nasceu em 1867, na então província do Ceará. Depois de uma infância difícil, órfão de mãe aos dez anos, o pai o mandou para o Rio de Janeiro, em 1883. Lá, o tio matriculou o rapaz na Escola Naval para que ele seguisse carreira na Marinha. Diante do espírito extremamente conservador da instituição, o moço manifestou ideias bem contrárias à política do país, criticando o Império e a escravidão. Continuou, porém, seus estudos, chegando a segundo-tenente em 1888. Pediu transferência para Fortaleza e lá se estabeleceu no cruzador Paquequer.
O Naturalismo como movimento literário vinha com força da Europa, encontrando em Aluísio Azevedo seu nome maior por aqui. Faziam parte do movimento alguns princípios deterministas segundo os quais o homem era fruto do meio, da genética e do momento em que vivia. Além disso, rejeitava-se a visão subjetiva e patriótica do país, valorizando-se uma análise mais objetiva dos fatos. Para completar, o movimento ainda fazia uma análise das deturpações psíquicas e físicas da personalidade humana, abordando temas como miséria, adultério e criminalidade. Desnecessário dizer, a temática e a estética naturalista assustavam um país conservador e atrasado, chocando o público com suas narrativas fora dos padrões do Romantismo.
Caminha, no entanto, não chocou apenas com seus escritos: na capital cearense, envolveu-se com a esposa de um alferes. Isabel de Paula Barros deixou o marido para ficar com o então militar – um escândalo para a época. O jovem tenente foi obrigado a deixar a Marinha e, livre da farda, procurou sua vocação nas letras. A estrada foi árdua: do seu “casamento irregular”, teve duas filhas; foi obrigado a voltar para o Rio, onde trabalhou como funcionário do Tesouro Federal. Publicou “A Normalista” em 1893. Dois anos depois, concluiu “Bom Crioulo”, abordando o tema da homossexualidade entre homens… da Marinha Nacional!
Primeiro livro da literatura brasileira em que o tema é tratado, “Bom Crioulo” critica a hipocrisia de uma sociedade na qual o caráter das pessoas é duvidoso, bem como sua honestidade e integridade. Lógico que Caminha estava mexendo num vespeiro de grandes proporções. O que o levou a escrever tal livro? Teria o autor presenciado algum envolvimento entre marinheiros ou ele mesmo teria tido um caso homossexual enquanto usava farda?
Amaro, negro forte e musculoso, é um escravo que fugiu e se alistou na Marinha. Lá, conhece Aleixo, o qual é em tudo oposto ao negro: adolescente branco, de olhos azuis e magro. Amaro se apaixona por Aleixo e vai viver com o rapaz na pensão da prostituta Carolina, mulher que havia sido salva de um assalto por Amaro.
O romance dos dois rapazes é ameaçado quando Amaro é chamado para um novo navio, agora com apenas uma folga por mês. Aproveitando-se da ausência do negro, D. Carolina começa a seduzir Aleixo, e o rapaz se apaixona pela mulher.
Contar mais seria estragar a narrativa. A história vai crescendo em dramaticidade, mostrando que não importa a natureza dos amantes – se hetero, bi ou homossexuais: o ser humano é sempre tomado por suas paixões e amores, por sentimentos como o ciúme, a rejeição, a saudade e a posse. O professor e crítico Alfredo Bosi escreve que “mais denso e enxuto que o romance anterior (‘A Normalista’), ‘Bom Crioulo’ resiste ainda hoje a uma leitura crítica que descarte os vícios da escola naturalista e saiba apreciar a construção de um tipo, o negro Amaro, coerente na sua passionalidade que o move, pelos meandros do sadomasoquismo, à perversão e ao crime”.
Pode-se não gostar do livro, é claro, mas não se poderá nunca negar a ousadia do autor em abordar temas ainda hoje polêmicos: a homossexualidade entre militares e o sexo entre pessoas de diferentes etnias!
Conheço muitos livros didáticos que, simplesmente, ignoram Adolfo Caminha. No capítulo sobre Naturalismo, citam apenas Aluísio Azevedo e seus livros mais estudados – “Casa de Pensão”, “O Mulato” e “O Cortiço”. E vamos embora!
Muitos professores (e alunos também!) acham desconfortável lidar com o “Bom Crioulo”. Certamente porque ainda não estão preparados para uma discussão mais séria sobre seus temas em sala de aula.
6 Comments
Texto ótimo esclarecedor, interessante, instrutivo e, como sempre, atual, adorei.
Não conheço o livro, mas me interessei! Por outro lado é um assunto que ainda gera uma boa “discussão”
Texto maravilhoso! Uma análise perfeita de um livro muito importante.
Honestamente não conheço o livro,mas o tema abordado por ele além de atual é extremamente interessante,pois a hipocrisia ainda leva a caça às bruxas.
Simplesmente maravilhoso.
Bela apresentação da obra, Vitão! Não conheço, mas me pareceu muito interessante. Lerei um dia.