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DOIS FILMES

       Em uma noite de 1981, a Rede Globo exibiu, para a surpresa de muita gente, um filme bastante incomum na televisão daquela época.

       Era uma sexta-feira, eu morava com meus avós e estudava à noite, o terceiro ano do hoje Ensino Médio. Cheguei por volta das 11h30 da noite, e os pais de minha mãe estavam já indo pra cama. Minha avó, como sempre, havia carinhosamente deixado alguma coisa para que eu comesse antes de dormir. Tomei um banho e liguei a TV. Fiquei assistindo com o volume bem baixo para não os acordar. Era mais de meia-noite quando “Os Rapazes da Banda” começou na telinha!

       A princípio, o filme não me chamou muito a atenção, mas a coisa foi se desenvolvendo e eu percebi que estava diante do primeiro filme gay da minha vida! Como assim? Uma reunião de oito homens – um hetero – para uma festa de aniversário de um deles, narrada com acidez e sarcasmo. Fui me interessando pela história e, quando vi, eu estava diante de um filme muito interessante e ousado, ainda mais que havia sido feito em 1970. Claro que não comentei com ninguém dos meus amigos, não tive coragem. 

       Só muito, muito mais tarde, é que vim saber: dirigido por William Friedkin, “The Boys in the Band” é baseado numa peça americana de Mart Crowley, produção feita na esteira do Movimento de Stonewall, o bar em Nova York onde, em junho de 1969, os homossexuais, depois de muito apanharem, reagiram e se revoltaram contra os policiais que viviam dando batidas no estabelecimento para espancarem os frequentadores do lugar. A década começava com tudo: resquício, obviamente, da contracultura dos anos 60 – os movimentos feministas, homossexuais, negros, hippies, a própria revolução sexual etc… a coisa estava fervendo!

       O filme é impactante porque aborda as angústias, as paixões, os anseios, a “ferveção” daqueles homens na era pré-liberal dos anos 80 – portanto anos que antecederam a Aids e toda a mudança de comportamento que se seguiu. Ele existe em DVD e fiz questão de tê-lo aqui em casa. Já o vi algumas vezes, principalmente quando o mostrei para amigos em diferentes ocasiões.

       Acho que vale a pena assistir ao filme. A tensão é crescente, os conflitos vão tomando forma, os egos se chocam e a gente tem a nítida certeza de que, em termos de relacionamentos humanos, nós não mudamos muito. A Netflix lançou, em setembro de 2020, uma refilmagem – na minha opinião, inferior à original, mas isso vai do gosto de cada um, claro. Essa versão foi dirigida por Joe Mantello, e não é ruim, só acho que a outra é mais charmosa.

       De qualquer forma, não bastasse a qualidade de “Os Rapazes da Banda”, nunca vou me esquecer do impacto que o filme teve sobre mim – um rapaz gay, de 17 anos, morando num bairro de periferia, estudante de escola pública e totalmente com medo de que alguém descobrisse sua homossexualidade.  

       Não tenho notícias de a Globo ter exibido o filme de novo – acho mesmo que foi um “acidente”, um descuido do programador, ou, vai ver, o programador “fez de propósito”.

Nunca se sabe…

********

       No ano de 1982, com 18 anos, eu era office-boy e passava constantemente pelo Largo do Paiçandu. Eu ficava olhando os cartazes dos filmes, pois, naquela época, não tínhamos TV a cabo, streaming e essas coisas todas de internet. Tínhamos o cinema e a TV – até mesmo o videocassete ainda era muito caro.

       Bom, lembro bem que uma das salas do Cine Olido, perto de uma loja da Ducal, ali na rua Dom José de Barros, exibia um cartaz de um filme chamado “Fazendo Amor” (“Making Love”). Na foto, dois homens e uma mulher de  fisionomias sérias e até mesmo um tanto melancólicas. No rodapé, lia-se: “Uma história provocante de um desejo escondido”. Opa! O que era aquilo?

       A primeira coisa que me chamou a atenção foi que a atriz era Kate Jackson, do seriado televisivo “As Panteras”, que eu assistia sempre. Era um sucesso. Mas os rapazes da foto também me despertaram o interesse em ver o filme. Fui ler a crítica no jornal.

       O que hoje pode parecer banal ao leitor mais jovem não era tão banal assim em 1982! O filme trazia um triângulo amoroso envolvendo homossexualidade: com a direção de Arthur Hiller, acompanhamos a história de Zack Elliot (Michael Ontkean), um médico bem-sucedido da cidade de Los Angeles, na Califórnia, e sua esposa Claire (Kate Jackson) uma produtora de TV também de sucesso na carreira. O casamento de oito anos parece que vai bem, até que, sem Claire saber, Zack começa a dar vazão ao seu desejo por homens, embora negando para si mesmo que seja um homossexual.

       Zack começa a frequentar bares gays de West Hollywood, sempre relutando e mal consigo mesmo pelo tesão que não controla.

       Numa consulta, conhece Bart McGuire (Harry Hamlin), um escritor assumidamente gay. Os dois se envolvem, mas Bart não consegue se fixar em nenhum relacionamento, pois é avesso a compromissos sérios.  

       Zack se envolve cada vez mais com Bart e resolve relatar tudo a Claire. O conflito se estabelece e há um recurso interessante explorado pelo diretor: os três falam com a câmera, como se estivessem dando depoimentos sobre seus comportamentos, emoções e sensações. Cada um deles vai vendo sua vida sendo transformada até que se chega à solução final.

O filme é bonito, sério, bastante corajoso para a época. Acho que não ficou muito tempo em cartaz e nunca saiu em DVD no Brasil – o que tenho aqui é importado. 

       Kate Jackson, que havia saído de “As Panteras” em 1979, retornou à TV em “The Scarecrow and Mrs. King”, ao lado de Bruce Boxleitner. A série durou quatro temporadas – de 1983 a 1987.

A carreira de Hamlin no cinema também não foi adiante. Tomou o rumo da TV e foi nesse veículo que o ator conseguiu vários papéis em seriados como “L.A. Law”.

O ator Michael Ontkean sofreu as consequências de ter interpretado um marido que trai a mulher com outro homem: durante oito anos, só ficou com papéis menores e ele sabia que isso era por causa de “Fazendo Amor”. Seu personagem mais marcante foi o xerife Harry S. Truman no filme “Twin Peaks”, de David Lynch, em 1990.

Sempre houve pessoas que fizeram confusão entre atores e os personagens que eles interpretaram no cinema, na TV e mesmo no teatro. Em décadas anteriores, tinha-se que tomar cuidado com a aceitação de papéis em filmes, peças e novelas, pois uma escolha errada poderia prejudicar e/ou pôr fim a uma carreira.

No início dos anos 80, parece que a coisa não havia mudado muito.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. The Boys in the Band filme “diferenciado” pela época, interessantíssimo. O remake ainda não assisti.
    Filmes assim nos fazem “viajar” e ver que o pessoal da produção tinha ideias além de.

  2. Clarice keri disse:

    Como sempre, a delicadeza de detalhes me surpreende, ótimos comentários sobre dois filmes, que tenho certeza, poucos conhecem.

    • Baltasar Pereira disse:

      Não assisti aos dois filmes citados,mas fiquei bem interessado.
      Homossexualidade nas décadas anteriores a que vivemos era difícil em viver e muitas vezes se aceitar como Gay.
      Tema que continua interessante e intrigante até hoje.
      Bela Crônica sobre momentos da Vida do cronista.
      Muito interessante. 👏👏

  3. Marco Antonio Gonçalves disse:

    Não assisti aos filmes,mas pretendo faze lo em breve.Somente assim poderei realizar meu juízo de valores.Basta desta sociedade hipócrita que vivemos.

  4. Aurélio Lima Pereira disse:

    A crônica, quando bem realizada, cria uma sensação de proximidade entre leitor e autor.
    Em DOIS FILMES, nosso cronista parece se materializar num Café, sentar-se com seus leitores e levá-los, despretensiosamente, para uma viagem breve e marcante pelas memórias do escritor.
    Ao fim do percurso, nós, leitores, queremos outra passagem (para a mesma viagem?), pois temos a certeza de que, apesar de o roteiro ser igual, nós já não somos iguais ao primeiro leitor, afinal, uma viagem sempre promove mudanças.

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