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14 de junho, 2021
JULGAMENTOS
2 de agosto, 2021
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TRABALHO EM GRUPO

       – Fala, Pedro! Tudo bem? Como está essa força?

       Não reconheço a voz, nem o número que aparece no meu celular. Curioso, pergunto quem é.  E a resposta me surpreende ainda mais!

       – Como “quem é”, rapaz? É o Fábio, seu amigo de ginásio… esqueceu de mim? Não vou perdoar se tiver esquecido!

       Ele dá risada. Fico um pouco sem ação, estou muito surpreso com a ligação depois de, quanto tempo?, mais de 30 anos.

       -Opa, Fábio! Tudo bem? Que surpresa é essa, rapaz? Como me encontrou?

       – Você e sua aversão a redes sociais. Tô sabendo de tudo! Encontrei o Júlio e ele me deu seu telefone. Como é bom falar com você! Nossa! Quanto tempo! Uns 30 anos?

       – Mais, um pouco mais. Desde o nosso ginásio… aliás, palavra que nem se usa mais. Agora é “ensino fundamental”.

       – Mudaram só as moscas, Pedro!

       Rimos juntos. A piada é velha, dos nossos tempos de menino, quando queríamos falar que alguma coisa continuava a mesma porcaria e só havia mudado superficialmente. Quando tínhamos alguma professora nova para dar uma matéria da qual a molecada não gostava, alguém dizia: “Só mudou a mosca, porque a bosta continua a mesma…”. Moleques!

       O homem que falava ao telefone em nada lembrava o menino que havia estudado comigo fazia tantos anos.

       Fábio era o mais velho da classe – e o mais vagabundo também. Falava besteiras para irritar os professores. Não havia um professor que gostasse dele, não havia um que não o tivesse posto pra fora da sala de aula. Ele era velho conhecido da nossa diretora, pois fora suspenso diversas vezes nos anos em que estudou naquela escola estadual.

       Eu sou dois anos mais novo que Fábio, e, quando caímos na mesma classe, na então 8ª série, já era o terceiro ano que ele a repetia. Desleixado, sempre no fundão da sala, era tido como caso perdido por nossos professores. Meus amigos, que me acompanhavam desde a 5ª série, não gostavam dele e achávamos que sua amizade poderia “prejudicar nossas notas”. Tínhamos 14 anos, então; Fábio tinha 16.

       Jamais fazia a lição de casa; foi pego colando em provas várias vezes – nota “zero”, e os pais chamados pela diretora. Nas aulas de Educação Física, sempre se fingia de doente para não fazer muito esforço, e nosso professor fazia vistas grossas: não queria confusão. Seu boletim era uma verdadeira “hemorragia” – nota vermelha em quase tudo.

       Na hora do intervalo, Fábio estava sempre sozinho, comendo seu lanche, distante da molecada. O pai não o tirara do período matutino porque tinha grana, então o filho não precisava trabalhar, embora já tivesse idade para isso. Por outro lado, sabia-se que seu pai não iria gastar dinheiro com ele numa escola particular. Minha mãe contou lá em casa que, numa reunião de pais e mestres, o homem dissera: “Meu filho é um imprestável, não gosta de estudos. Se tivesse um pai pobre, estava na água. Não tenho esperanças com esse moleque. Ele só me dá vergonha”. Minha mãe e os outros pais é que ficaram com vergonha naquela reunião. Os professores, constrangidos.

       Uma vez, Fábio apareceu na escola com o olho roxo e todo o mundo comentou. Disseram que havia sido uma briga de rua, coisa de moleque, coisa que era “própria do Fábio”. Ele não disse nada: nem que sim, nem que não. Sentou-se no fundão e lá ficou, copiando o que queria, olhando para o nada na maior parte do tempo. Naquele mesmo dia, passei mal na aula e a professora me disse para ir até a diretoria tomar um remédio para o estômago. Tomei – acho que um sal de frutas – e fiquei sentado lá um tempo, sozinho, quieto. Pouco depois, foi Fábio quem apareceu, emburrado, cara feia, olho inchado. A professor de Ciências, cansada de ele não fazer nada, mandou-o sair da sala.

       Ficamos sentados lado a lado naquela sala vizinha da diretoria. Fábio, para minha surpresa, perguntou se eu estava melhor. Respondi que sim, que estava passando o mal-estar. Perguntei sobre o olho dele, se doía, se estava incomodando. Ele respondeu que não, que aquilo era bobagem, não estava mais doendo. Ousei perguntar se ele havia mesmo brigado na rua como todos estavam dizendo.

        – Isso aqui? Isso aqui, Pedro – disse ele com um sorriso triste -, foi um soco do meu pai. Ele queria bater na minha mãe e eu entrei no meio. Ele se esqueceu dela e me deu um soco no olho. Caí no chão e foi o tempo de os vizinhos segurarem o velho. Pena que meu irmão mais velho não estava em casa.

       Fiquei sem saber o que dizer. A molecada jamais, nunca poderia imaginar tal história. Ninguém da classe frequentava a casa do Fábio. Seus amigos já haviam saído da escola para outras de ensino secundário. Ficamos lá, sem saber muito bem o que dizer um para o outro. Minha dor de estômago passou; Fábio recebeu outra advertência e a manhã se foi.

       De alguma forma, aquele episódio acabou nos aproximando. A gente se cumprimentava quando chegava à escola, embora não houvesse maiores conversas. Comecei a olhar para ele de modo diferente e, antes das férias, eu já estava apaixonado por aquele rapaz bonito, mas triste, largado, sozinho no fundo da sala.

       A professora de História mandou que formássemos grupos de até cinco alunos para um trabalho sobre “As grandes conquistas brasileiras da década”. Era o tempo da ditadura militar, então o ufanismo comia solto. Tínhamos que pesquisar na biblioteca da escola e entregar o trabalho “datilografado com capa, ilustrações e nomes dos componentes do grupo”. Nossa média seria calculada com a soma da nota da prova e do trabalho, dividida por dois.

       Foi no intervalo que Fábio veio falar comigo. Eu estava comendo meu lanche e ele se sentou ao meu lado. A molecada mais nova correndo no pátio, falando alto, sujando o uniforme, antes que batesse o sinal da volta à sala de aula. A gente se cumprimentou e ele disse:

       – Pedro, estou sem grupo pra fazer o trabalho de História. Será que posso ficar com você e seus amigos? Vocês já são cinco, mas acho que a Dona Esmeralda deixa um grupo com seis… será que vocês deixam? Por favor, se eu não me formar neste ano, meu pai me mata. E não aguento mais esta escola. Quero ir pro colegial em outro bairro, sair daqui. Já é o meu terceiro ano na 8ª série!

       Apaixonado como eu estava, claro que, por mim, não haveria problema em incluí-lo no grupo. Mesmo que ele não fizesse nada, pôr o nome dele não me custaria… o problema eram os outros, os outros meninos que não gostavam dele e que não receberiam a notícia com simpatia – como não receberam. Fábio falou com Dona Esmeralda, que deixou nosso grupo ficar com seis. Eu fiquei de falar com os meninos.

       O Paulo e o Júlio foram os que se opuseram. Não queriam “aquele vagabundo” no grupo de jeito nenhum. “Parasita. Não vai fazer nada e vai levar uma boa nota”. O César e o Raul ficaram neutros. “Por nós, tanto faz. Se ele não atrapalhar, tá legal!”. Para mim, era importante que Fábio ficasse com a gente. Eu queria ficar perto dele, mas não confessava isso nem pra mim, muito menos para os amigos. Durante o intervalo, eu ficava olhando pra ele e imaginava aquele rapaz bonito e forte do meu lado. Eu estava mesmo apaixonado.

       Consegui convencer o Júlio, que impôs uma condição: “Se ele começar a atrapalhar nosso trabalho, a gente bota ele pra correr. Não estou a fim de tomar bomba em História por causa dele, hein!”. Concordei, fiz que sim com a cabeça e trato feito. Paulo era mais difícil. Acabamos brigando, uma discussão forte entre dois meninos de 14 anos, por causa de um outro de 16. Quase saímos no tapa, eu defendendo Fábio, dizendo que ele merecia uma chance, que a gente não conhecia o cara. Paulo gritando, dizendo que a gente “conhecia, sim”, ele era vagabundo e “ia tirar nota às nossas custas”. Com o apoio do Raul, acabei convencendo Paulo e Fábio foi aceito.

       O que se viu foi inédito. Fábio não só compareceu a todas as reuniões do grupo, como participou bastante da pesquisa em si. Foi ele que se propôs a datilografar o trabalho – “Meu irmão tem uma máquina. Eu datilografo na parte da tarde. Podem ficar sossegados”. E o trabalho ficou ótimo. Dona Esmeralda nos deu um “9,5”. Não fomos muito bem na prova, e a nota do trabalho salvou o grupo.

Pouco antes das férias de julho, a professora de  Português disse que tínhamos de fazer um trabalho em dupla sobre o livro “O feijão e o Sonho”, de Orígenes Lessa, uma história bonita e sensível, que guardo na lembrança. Deixei que meus amigos se juntassem e fui perguntar a Fábio se queria fazer o trabalho comigo. Ele aceitou na hora e me agradeceu. Sabendo que ele não leria o livro, combinamos o seguinte: eu faria a análise e ele bateria o trabalho à máquina. Tiramos um sonoro “10” pra ninguém botar defeito. Fábio me deu um abraço que eu nunca esqueci.

Naqueles 31 dias de julho, não vi Fábio, nem qualquer um dos meninos. Passei as férias todas jogando bola na rua. Eu não morava perto da escola, então só os via nos dias de aula.

       Quando agosto começou, Fábio havia mudado. Começou a copiar a matéria, parou de tentar colar nas provas e foi o único que, numa chamada oral de Geografia, tirou “9,5”: não tirou um “10” só porque se esqueceu da capital da Iugoslávia. Lembro como se fosse hoje. A nota mais alta da classe. Da minha cadeira, fiquei muito feliz por ele. Eu gostava em silêncio, em total segredo, e isso, às vezes, doía. Mesmo para um rapaz de apenas 14 anos, isso doía.

       O semestre foi passando, e as notas dele foram melhorando. Os professores o olhavam com outros olhos, mas ele sempre meio triste, meio ausente. Ele se esforçava para ser aprovado, nada muito além disso. Foi por esse tempo que a Cristina, também da nossa classe, começou a gostar dele e veio me contar. Fiquei quieto, limitei-me a dizer simplesmente que Fábio era um cara legal, que apenas não gostava de estudar. Só isso. Não era um mau elemento, como todo o mundo dizia.

       Não sei se a Cristina acabou tendo alguma coisa com ele. Depois dos nossos trabalhos de História e Português, Fábio voltou a se distanciar de nós, embora fosse sempre gentil comigo. Quando o ano terminou, ele ficou de exame somente em Matemática, ainda assim precisando tirar apenas um “5,0”. Tirou e foi aprovado. Ele ia se formar com a gente!

       Não houve baile de formatura. Nossos pais não tinham dinheiro para isso. Fizemos somente uma bonita missa na Matriz, na qual alguns professores leram mensagens para os formandos sobre saudade, responsabilidade, maturidade etc. A maioria de nós não tinha telefone, artigo de luxo no Brasil daqueles tempos. Cada um foi para um lado e, mesmo o meu grupo, tão unido na escola, desmanchou-se. (Tudo o que ficou foram algumas fotos que meu pai tirou na porta da igreja com a classe toda reunida e alguns professores mais queridos. Guardei-as todas como se guarda um tesouro.)  

       Muitos de nós começariam a estudar no período noturno para poderem trabalhar e ajudar a família. Alguns tristemente parariam os estudos, pois não aguentariam o tranco de trabalho e escola até tarde da noite. Na nossa classe social, um rapaz com 15 anos tinha sérias obrigações.

       Pode parecer absurdo, mas despedi-me de 90% da classe ali, na saída da igreja, para nunca mais encontrá-los. Não tínhamos celular, internet, redes sociais etc. Às vezes, encontrávamos um ou outro no ônibus ou nossas mães se encontravam na missa ou na feira. Nada além disso. Eu morava meio longe da escola, em outra vila.

       A última vez que falei com Fábio foi no fim da missa. Ele estava com os pais, o irmão mais velho e a avó que morava com eles. Fábio estava bonito, bem arrumado, cara de quem estava aliviado também. Notei que havia feito a barba, coisa que nenhum de nós, com 14 anos, fizera. Isso lhe dava um ar adulto, uma cara de homem que nunca esqueci. Ele me abraçou e disse no meu ouvido: “Obrigado pela ajuda, Pedro. Sem você, eu teria que fazer aqueles trabalhos sozinho. Nem acredito que estou saindo dessa escola!”. Eu apenas sorri e o abracei com toda a força que eu tinha nos braços. Era a última chance que eu tinha. Senti o cheiro da colônia pós-barba que ele havia usado no rosto. Nunca mais me esqueci daquele aroma.

       Na volta pra casa, tive uma estranha vontade de chorar. Acho que foi a primeira vez que me senti desse jeito. Todos estavam contentes – meus pais, meus irmãos, meus avós e alguns tios. Minha mãe fez um lindo bolo e salgadinhos. Era uma sexta-feira, e ficamos comendo e bebendo até quase 2h da manhã.

       Tive a sensação estranha de que, a partir daquele dia, minha vida mudaria. Eu não veria mais aquele rapaz todos os dias, nem teria notícias dele. A palavra “saudade” começava a fazer sentido pra mim. Lembro que, sozinho, fiquei com os olhos cheios de água quando vi as fotos que meu pai revelou dias depois.

       A vida seguiu. Eu tomei meu rumo, fui estudar noutro colégio, fui trabalhar, fiz faculdade de Economia e hoje trabalho no mercado financeiro. Tive alguns homens na minha vida – alguns que me fizeram feliz e outros que me fizeram sofrer. Às vezes, pensava muito naquele grupo de amigos da escola, sempre me perguntando o que teria sido feito de cada um. Meus pais se mudaram do bairro. Minha vida ficou longe da infância no tempo e no espaço.

Há dois anos, porém, encontrei o Júlio no metrô. No meio de tanta gente, ele me viu e veio falar comigo. Nós nos abraçamos e mal pudemos nos conter de tanta alegria! Saímos para jantar dias depois; ele me apresentou a esposa e as duas filhas. Virei amigo da família.

       Quando vi que nossos laços estavam se estreitando novamente, falei de minha homossexualidade pra ele. Júlio foi ótimo: “Qual o problema, Pedro? Cada um, cada um…”. Fiquei tão feliz com a postura dele! Um dia, resolvi falar da minha paixão pelo Fábio.

       – Sério, Pedro?! Por isso você defendeu tanto a entrada dele no nosso grupo? Nunca desconfiei de nada. A gente era muito moleque. Vocês tiveram alguma coisa na escola?

       Eu lamentei que não. Rimos juntos, e eu notei que Júlio ficou me olhando com cara de quem diz: “Quem diria, hein!”. Fiquei feliz de retomar minha amizade com ele. De alguma forma, a vida se encarregou disso.

       Agora, vem essa ligação do “menino” que me atraía na escola. Fábio me liga, diz que Júlio lhe deu meu telefone. O que Júlio terá falado sobre mim? O que Fábio quis dizer com “tô sabendo de tudo”? Júlio, safado, não me contou que o havia encontrado e deixou que Fábio me surpreendesse. E surpreendeu!

       Mais do que isso, botou um sorriso no meu rosto do outro lado da linha. Nosso papo é gostoso, descontraído, divertido. O pensamento volta à minha cabeça: sua voz não lembra em nada aquele rapaz emburrado e de mal com todo o mundo. Parece ser um homem mais feliz do que o menino que conheci. Ele me convida para jantar e “contar tudo”.

– Pelo telefone, é um saco, ele diz.

Aceito o convite, claro. Marcamos para o dia seguinte, num restaurante que ele conhece perto da avenida Paulista.

       – Às 8h?

       – Combinado, Fábio. Às 8h!

       Antes de desligar, pergunto se ele se casou, se tem filhos, se ficou com a Cristina.

       Ele faz uma pausa e responde:

       – Não casei com a Cristina, não. Ela era muito chatinha e muito mimada. Pra falar a verdade, Pedro, se eu pudesse ter ficado com alguém daquela classe, não teria sido ela…

                                             

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Shirleyne disse:

    Delicia de texto!!!
    Também senti a mesma tristeza na porta da igreja na saída da missa da 8ª serie. Mas a vida nos surpreende sempre. Hoje passados 40 anos ou mais, revejo alguns amigos daquela época. Quanta felicidade poder compartilhar os melhores anos da nossa vida com pessoas que fizeram parte dessa história.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Comecei a ler a Crônica e esperava que fosse por um caminho e o que mais gostei que acabou indo para um rumo todo diferente.
    Ao ler me recordei de Histórias por mim vividas e também da primeira paixão que tive.
    Adorei o final e ficou o gostinho de quero a continuação desta Crônica.

  3. Clarice keri disse:

    Boa história, só que o final ficou na minha cabeça, adorei, obrigada.

  4. Professor, li duas vezes – “viajei” e posso dizer que passei por algo semelhante.

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