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PARADOXOS

“(…) Esta razão me obriga a confiar

Que, por mais que pequei neste conflito,

Espero em vosso amor de me salvar.” 

                 Gregório de Matos, poeta barroco.

 

                Desde a primeira vez que conversamos, no shopping, eu lhe disse que você era um homem bem barroco. Você riu, disse que não tinha a mínima ideia do que eu estava falando. E eu lhe expliquei que o Barroco era marcado por contradições, antíteses e paradoxos: pelo querer e não-querer, pelo desejo carnal e pelo desejo de salvação da alma, por respeitar convenções e, ao mesmo tempo, por querer infringi-las.

        Você ficou pensando por alguns instantes, acho que não entendeu direito aonde eu queria chegar, mas o tempo me deu razão. Quando você vai embora, fico pensando em seus paradoxos e conflitos, e me intriga o modo como você lida com eles.

        Você é casado, pai de duas filhas adolescentes, rigoroso com elas e austero. Tem medo que elas façam sexo com os namorados, mas leva uma vida dupla: tem a esposa em casa e vem ao meu apartamento duas vezes por semana para transar com um homem.

        Diz que adora transar com ela, diz que se dão muito bem na cama, chega a gozar mais de uma vez por noite, diz que ela é apaixonada por seu pau avantajado, mas, quando vem pro meu quarto, pede que eu o penetre, e geme e sua e goza e quer sempre gozar mais de uma vez.

        Você me conta que ela detesta quando você deixa de fazer a barba, então você se barbeia sempre que vão transar; por outro lado, sabe que eu adoro quando você está com a barba volumosa, espessa, bem acertada – e sempre aparece aqui assim, dizendo ter ido ao barbeiro para deixar o seu rosto como eu gosto dele. E me beija do pescoço ao pau, descendo lentamente, até me deixar incendiado e pedir para você se deitar de pernas abertas.

        Diz que, em casa, assiste a muitos filmes de ação e de super-heróis com ela – ambos gostam do gênero. Quando você tem um pouco mais de tempo, contudo, adora que eu lhe mostre algum filme clássico, em preto-e-branco, com atores e atrizes dos anos 40 ou 50. Por mais de uma vez, vi o brilho nos seus olhos diante de um filme assim.

        Você é religioso ao extremo. Não tolera que alguém seja ateu, não consegue entender como uma pessoa pode viver sem a esperança de que haja um mundo melhor do que este após a morte. Cita a Bíblia como se a estivesse lendo, tal sua familiaridade com os textos do Antigo e do Novo Testamentos… mas não aceita que lhe digam que, ao se deitar com outro homem, você esteja ofendendo ao Criador. “Minha fé é maior que qualquer pecado”, você diz.

        Adora jogar dominó com os amigos no bar da esquina de sua casa – a mesma casa em que você nasceu e cresceu e na qual mora com a esposa e as filhas. O jogo e a cerveja com os amigos de infância na manhã de domingo são “sagrados”, como você mesmo diz, até que a esposa mande chamá-lo porque a macarronada, o bife e a salada de maionese estão na mesa à sua espera. Ninguém começa a comer antes de você ir ao banheiro, tirar a camiseta branca regata molhada de suor, lavar o rosto, o peito cabeludo, vestir outra camiseta e sentar-se na ponta da mesa. Antes de se deliciarem com o almoço preparado por ela, uma oração fervorosa em agradecimento pela fartura daquela refeição. Aqui em casa, porém, você não faz suas orações: come a comida japonesa que eu compro com frequência, delicia-se com a “novidade” e sempre pede para eu comprar mais, apesar de ter estranhado na primeira vez. Adora comida chinesa e comida árabe (“Pensei que eles só comiam quibe e esfirra…”).

        Em sua casa, você usa o palito de dente quase como um vício, sempre no canto da boca, depois das refeições. Até ir escovar os dentes, o palito fica ali, parece não perturbar você e a ela, que já se acostumou com os homens com os quais convive – pai, irmãos, cunhados etc. Aqui, você sempre me pede licença e vai usar meu fio dental e a escova de dentes que eu lhe comprei. Enquanto tiro a mesa, escuto você escovando os dentes e usando meu antisséptico bucal. Volta com a boca perfumada e me dá um beijo demorado, como se pedisse aprovação pelo que fez.

        Você e ela ouvem música sertaneja nas alturas, pelo que você mesmo me conta. Gostam dessas duplas que invadiram as rádios e a TV. Vão a shows e baixam as músicas todas na internet. Vocês sabem todas as letras. Gostam da tal da “sofrência”. Mas, sempre que pode, você vai à minha “velha coleção de LPs” e procura um disco de músicas daquela MPB dos anos 70. E mexe com prazer no meu toca-discos, coisa ultrapassada e antiga, como você diz, e isso lhe faz sorrir. Fico sentado no sofá, somente de calção, deixo que você explore meus discos, que escolha as músicas, que crie o clima para nosso namoro.

        Sem pensar muito no que eu possa sentir, você me mostra as fotos dela e das meninas no celular. Explica onde e quando foram tiradas, por que foram tiradas, o que faziam na hora etc. Eu não me importo, mas poderia me importar. Eu deveria sentir ciúme, mas não consigo. Parece que, quando fala de si mesmo na outra casa, você fala de outra pessoa. Fala das três mulheres com um carinho e um amor muito grandes, e, pra ser sincero, fico tranquilo com isso. Acho que não permitiria na minha casa um homem que, casado, maltratasse a esposa e as filhas. Acho, porém, paradoxal que você fale tanto delas assim, só de cueca, peito nu, braços peludos e fortes que alisam minha perna enquanto observo as fotos.

        Você vive em dois mundos paralelos. Será que sua esposa nunca desconfiou de nada ou faz vistas grossas para esse mundo que você frequenta aqui em casa?

        Uma vez, ela viajou com a filhas e você veio dormir aqui. Comprei comida tailandesa (outra novidade!), jantamos, ouvimos música, fomos ao teatro (você nunca tinha visto uma peça), tomamos vinho, transamos muito (que pau e que bunda você tem!) e, pela primeira vez, você não tinha que ir embora. Tivemos o sábado e o domingo inteiros, pois, na segunda-feira, você pegaria a estrada de novo. Há quantos anos é caminhoneiro? 20 anos? Desde os 18? Seu corpo musculoso e sua bunda durinha vêm daí.

        Lembro que, naquela noite, na noite em que você dormiu aqui, eu me demorei pra pegar no sono. Você, depois da segunda gozada, foi ao banheiro, mijou muito (pude ouvir o jato forte) e voltou caindo de cansaço. Você me abraçou, resmungou alguma coisa, e eu ainda pude sentir seu pau volumoso nas minhas pernas.

        Fiquei olhando pro teto, só a luz da cidade entrando pela fresta da janela. Olhei pra você, dormindo profundamente, um caminhoneiro de 38 anos que só há alguns meses resolveu que deveria satisfazer seu “outro lado”, como você mesmo disse. Homem rústico, porém sensível; homem da estrada, e talvez por isso mesmo amante do sossego; macho de fazer muita mulher se entregar nos vilarejos e paradas deste imenso país, mas que adora também se deitar comigo e, submisso, me fazer gozar.  

        Eu me preocupo – não com você, mas comigo. Conheço isso que estou sentindo agora. Acho que não deveria me apegar tanto. Sou, também eu, paradoxal: quero alguém com quem eu possa dividir minha vida, mas aceito em minha casa um homem casado, pai de duas filhas, que jamais ficará somente comigo. Um homem que lida com suas contradições sem pensar muito nelas – talvez o único meio que ele tenha encontrado para ser feliz.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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