MILITAR E GAY
3 de janeiro, 2022
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TROCAS

Pensei muito sobre nossa conversa de ontem, meu amigo. Então, você me diz que quer vir pra cidade grande. Não aguenta mais viver “no armário”, na cidadezinha onde nasceu, cresceu, estudou, viveu momentos muito bacanas, mas que, segundo você mesmo, sufoca qualquer um com moralismos e a eterna vigilância de amigos e familiares – sem falar no padre, que frequenta a sua casa há mais de vinte anos.

Conheço todos, todos os detalhes do que você me relatou, lembra-se? Também nasci aí, também fui criado da mesma forma que você, também tinha uma família como a sua. Acho que meu nível de tolerância foi muito menor do que o seu, meu caro. Cheguei a um ponto no qual simplesmente não dava mais! Eu precisava partir, me livrar de olhares de abutre das vizinhas, fugir dos professores que eu encontrava pelas calçadas e dos amigos do meu pai que viviam lá em casa com brincadeiras bestas quando minha mãe não estava por perto. “Está na hora desse rapagão visitar a zona”, “Nenhuma namorada ainda? Ah, precisamos mostrar pra ele o que é bom!”, “Treze anos e virgem, garoto? Deixa com a gente”. E o meu pavor quando aquela turma se reunia lá em casa para ver jogo – eles aproveitavam as ausências da minha mãe e da minha irmã e começavam com as cobranças. Meu pai, esse entrava na folia, depois de três ou quatro cervejas. Eu podia ver no rosto dele um olhar de “Como é? Vai reagir como homem ou não?”. Mal sabia que eu olhava era para os amigos dele!

Por tudo isso, entendo seu desejo de querer vir pra cá. Mas há tanta coisa que você precisa saber, meu amigo!

Entendo seu deslumbre com a palavra “privacidade” ou com o termo “autonomia”. Mas olhe que isso tem o outro lado também. Haverá momentos em que sua privacidade vai se traduzir em “solidão”, e sua autonomia vai ser mais bem traduzida como “só eu posso decidir sobre isso ou aquilo”. Você está preparado para tais situações?

Você me diz, com entusiasmo, de como quer um apartamento no centro, só seu, sem “ninguém para dizer quando você deve sair, se deve sair; quando deve voltar, se deve voltar”. E isso é mesmo muito sedutor. Sei que, embora você não tenha falado, eu sou o seu modelo ideal de liberdade e de autonomia. Mas há tanta coisa de minha vida que nunca lhe contei desde que saí daí! Tanta coisa! Tantas paixões não correspondidas, tantas noites em frente à TV quando senti o sofá aqui de casa grande demais! Tantos rapazes bacanas que não ficaram e tantos que não valiam nada! Tantas mensagens enviadas a amigos que sequer foram respondidas! Tantos “amigos” que só me procuraram quando seus namoros não davam em nada e eles precisavam desabafar! E eu tomando consciência disso somente quando eles conheciam um namorado novo e não respondiam às minhas mensagens.

A gente vai criando uma proteção contra gente assim – no entanto isso nos custa a inocência e a pureza. A gente vai aprendendo a se defender na cidade grande e percebe que um sorriso nem sempre é um sorriso, que uma mão no ombro nem sempre significa amizade.

Você quer deixar a rede pendurada no terraço de frente da sua casa pela cama no 20º ou 25º andar de um prédio qualquer entre centenas de outros. Eu entendo: também fiz essa troca e estou aqui faz cinco anos. O fato, meu amigo, é que o rapaz que saiu daí não é o mesmo que está aqui, escrevendo pra você agora.

As palavras “balada”, “boate”, “sauna”, “bar” são mesmo sedutoras para quem não tem privacidade alguma como você não tem aí, e eu também não tinha. Mas, com o tempo, isso vai perdendo um pouco do colorido, acredite em mim. Com o tempo, a rotina esmaga um pouco esse fascínio.

Se me arrependo de ter vindo? Nem por um segundo! E não quero, de modo algum, que esse texto desanime você. Só estou expondo aqui um pouco de minhas experiências. Sempre fui um pouco menos romântico que você: jamais quis vir para “encontrar o grande amor da minha vida” e essas coisas todas que a gente idealiza sobre a cidade grande. Vim pra levar a minha vida como sempre desejei – acompanhado ou sozinho, não importava, como não importa. Adoro ser o dono do meu nariz, mas não se esqueça de que “quanto mais liberdade, menos segurança”. Pense bem sobre o que realmente quer fazer aqui. Há mais oportunidades de emprego, de crescimento profissional, de amadurecimento – sem dúvida alguma! A vida noturna dá de mil a zero nessa cidadezinha onde nascemos e fomos criados. Você passa e não interessa a ninguém de onde você é, o que faz, o que vai fazer… e isso tem os seus dois lados.

Moro num prédio familiar, simples, mas com apartamentos muito bons. São apenas dois por andar. Imagine que, há duas semanas, dois policiais bateram à minha porta. Eram 6h da manhã, eu estava saindo pro trabalho. Tomei um susto – e, devo confessar, fiquei excitado! Bem, quando atendi os dois bonitões, eles me perguntaram se eu “conhecia a moça do apartamento em frente”. Foi minha vez de perguntar: “Mora alguém aí? Nunca vi essa porta aberta…”. Bem, não só morava, mas também era uma moça que fazia programas numa casa de prostituição famosa aqui. Estava explicado: eu não a via porque, à noite, ela nunca estava em casa, é lógico. Naquela madrugada, saiu com um cliente e tomou um “Boa noite, Cinderela” (você sabe o que é isso?). O sujeito a fez trazê-lo para cá e, não contente em roubá-la, espancou a moça e a deixou drogada, inconsciente e sangrando, jogada em cima da cama. O porteiro, desconfiado do que acontecera, pois o homem saíra apressado e na madrugada, chamou a polícia. Eles me chamaram para testemunhar o ocorrido. Quando entramos no apartamento, fiquei muito triste a assustado – tudo bagunçado, as gavetas da moça abertas e reviradas, ela jogada em cima da cama, sangue escorrendo no canto da boca. Aquilo deprimiu a mim e aos rapazes da polícia. Nunca tive um retrato mais nítido da solidão e do anonimato em uma cidade grande do que naquela manhã. Foi um tanto assustador, meu amigo. Eu nunca tinha visto minha vizinha – quanto a vi, foi naquela situação constrangedora. A moça se mudou daqui faz alguns dias. Vergonha, claro. As pessoas moram umas ao lado das outras, mas não se veem, não se conhecem.

De novo: conto tudo isso não para lhe fazer mudar de ideia, mas para alertá-lo sobre as coisas que a gente vê e vive por aqui. É bem diferente de se conhecer todo o mundo.

É na cidade grande que o conselho bíblico mais vale: “Vigiai e orai!”.

Se você tiver mudado de ideia, eu entenderei. E sentirei um pouco de inveja por eu não ter tido paciência e paz de espírito para ficar vivendo aí. Saudade de algumas coisas.

Se este texto pegar você de malas prontas, venha!  Não pense duas vezes: venha e procure sua felicidade. Aqui também há rapazes bonitos, de bom coração e honestos como você. Claro que sim! Você poderá achar um namorado bacana, uma pessoa a quem possa valer a pena abrir o coração. 

Diga o horário de saída do ônibus e eu vou esperar você na rodoviária daqui. Faço isso com o maior prazer! E, quanto à sua outra pergunta: claro que sim, claro que você pode ficar no meu apartamento o tempo que for necessário até você se arranjar e até você arrumar a sua vida nesta cidade.

Enquanto escrevo, uma passagem de Shakespeare me vem à mente – não me lembro de que peça, não me lembro de que personagem, mas é esta: “Seja honesto com você mesmo e você nunca mentirá pra ninguém”. É isso!

Já posso ver você na rodoviária, ansioso, com as malas na mão. Dona Rita segurando as lágrimas e lhe dando um abraço; seu Paulo, meio sem entender muito o porquê de sua partida, estendendo-lhe a mão (nossos pais são gente boa, mas que dificuldade que têm em manifestar carinho!); Lúcia e Terezinha, acompanhadas dos namorados e meio chorosas, desejando-lhe sorte.

As trocas que temos de fazer na vida.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Quando me mudei do interior para a cidade de São Paulo, briguei comigo mesmo. Em momento algum deixaria que alguém descobrisse a minha orientação, ou melhor, não queria “sair do armario”. Depois de muitos anos na capital, as oisas foram mudando. Voltei para minha cidade natal, e ainda tenho isso comigo . Em determinados momentos, não fico no armário, e sim na geladeira.

  2. retificando, as coisas foram mudando…

  3. Clarice keri disse:

    Que história linda, gostoso ler sobre dramas reais, e disse bem, tudo é uma troca, obrigada.

  4. Baltasar Pereira disse:

    Excelente Crônica que expõe de maneira real o que ocorre nas grandes Cidades.

    Fiquei imaginando o rapaz lendo a resposta e as dúvidas e medos que lhe surgiriam e ao mesmo tempo a ansiedade de ter novos sonhos e metas.

    Claro,que nas cidades grandes temos lugares ,pessoas ,etc … muito bons,mas como tudo há os seus dois lados

    Triste ,melancólico e mostrando a “Vida como ela é “como diria,acredito eu,Nelson Rodrigues.

    Bela Crônica sobre a Vida em uma de suas várias facetas.

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