Sento-me num banco da praça que acabaram de reformar perto do prédio onde moro. Aproveito a manhã meio fria de quarta-feira, sol muito fraco, nuvens que ainda cobrem a cidade. As folhas das árvores balançam com o vento gelado. São 10h da manhã, estou em férias, ainda não decidi para onde vou viajar.
Alguns minutos depois, uma senhora se senta ao meu lado. Eu a vi chegando – casaco de lã vermelho, uma calça cinza, cachecol azul, tênis pretos, uma bolsa colorida a tiracolo. Ela vem com passos bem lentos, o cansaço de uma vida longa, embora eu não a conheça, nem saiba sua idade. Calculo que deva ter por volta de uns 80 anos, pouco mais ou pouco menos. Cabelos tingidos e presos. Seus olhos são verdes e penetrantes.
Ela é educada. Sinto-me bem ao lado de pessoas gentis, que não transpiram ódio e indiferença nesta cidade imensa e de tantas almas anônimas. Assim que toma um lugar no banco, apressa-se em sorrir e me dar um “bom dia” simpático, gentil, um tanto doce. Eu prontamente respondo ao cumprimento. Ficamos olhando para o nada, deixando que o sol, ainda tímido, nos bata no rosto, enquanto cruzamos os braços e procuramos nos aquecer.
A propósito de um rapaz bonito que passa correndo, pernas fortes, braços musculosos e rosto barbudo, ela vê meu olhar e sorri. Um sorriso cúmplice, de quem entendeu direitinho o que pensei quando o moço se foi. Sem olhar para mim, ela diz:
– Bonitão, né? A moçada de hoje é muito bonita. Vocês são muito bonitos!
Olho pra ela um tanto surpreso – e com certo constrangimento. Fui pego em flagra, sorrio comigo mesmo. Essa senhora não dorme no ponto. É ela quem fala de novo:
– Antigamente, a coisa era mais difícil pra vocês, não era? Eu sei que era… tive um filho como você.
Deduzo que esse “como você” seja “um filho gay”. Viro meu rosto para ela como quem pergunta: “É mesmo?”.
Ela parece ler meus pensamentos. – É, tive. Tive quatro filhos, mas o Márcio era diferente. Era mais carinhoso comigo, mais meu amigo, mais cúmplice. Estava sempre me apoiando no que eu queria fazer. Os outros sempre foram bons filhos também, mas o Márcio não era como eles. Demorei um pouco para entender os gostos do meu filho, seu estilo de vida, suas roupas, seus amigos, sua independência. Márcio saiu de casa com apenas 20 anos… bem diferente da moçada de hoje que tem medo da vida, medo do mundo, medo de tudo. Veja o senhor que tenho três netos. Todos com mais de 25 anos de idade – e todos morando com os pais. Ah, não! Isso é muito pra mim. O problema não é morarem com os pais: é serem dependentes pra tudo. Ficam naquela relação de dependência, de fragilidade… como são frágeis, meu Deus! Não entendo isso. Acomodados, isso sim! Acomodados e medrosos! Mudam de emprego como quem muda de roupa.
Encaro com naturalidade o fato de ela dizer tudo isso a um desconhecido como eu. Não a interrompo, sinto que ela precisa falar, que encontrou alguém que a ouça – ainda que um estranho. Talvez por isso mesmo!
– Naquele tempo, as coisas não eram tão às claras como hoje. O Márcio deve ter sofrido calado – seu primeiro amor, suas primeiras decepções, os parentes maldosos que frequentavam a minha casa e não evitavam um comentário mais venenoso sobre os moços que não gostavam de moças. Como já disse, demorei um pouco para perceber como essas coisas magoavam o meu filho. Quando ele pôde, foi morar com amigos. Depois, conheceu um rapaz muito simpático. Eu não achava bonito. Meu Márcio era mais bonito que o outro. Ficaram juntos por dez anos. E eu nunca tinha visto meu filho tão feliz. O outro era feliz também.
Eu deixo que ela fale. Olho para aquela senhora simpática, de voz doce, mas ela não me encara. Continua olhando para frente, deixando que o sol bate em seu rosto, torne seus olhos verdes mais cristalinos e lhe aqueça o corpo. Um vento gelado nos pega de frente, ela continua suas memórias:
– Um dia, isso faz doze anos, foram viajar para o sul. A perigosa BR-116. Deviam ter ido de avião, mas quiseram ir “curtindo a viagem”. O acidente foi terrível. Nem quero me lembrar do momento em que fiquei sabendo daquilo. Minha vida acabou ali. O que me manteve viva foram meus outros filhos e, mais tarde, os netos. Minhas alegrias. Meu marido já tinha morrido. Acho que nenhuma mãe deste mundo deveria passar por uma coisa assim. É muito duro! Muito duro! Às vezes, a gente vive, vai vivendo, sem perceber por quê… nem sei como ainda estou aqui.
Nem nesse momento sua voz perde a doçura. Nem nesse momento parece revoltada ou com ódio da história que me conta. Sua voz é, antes, de inconformismo, de incredulidade, mesmo após doze anos. Mas o que é o tempo para uma mãe?
– Meu filho era professor de literatura, sabe? Ótimo professor, disso eu tenho certeza. Adorava ler poesia pra mim. Ele gostava de livros. Livros e café. Como tomava café! Estou aqui com um livro que era dele. Vim ler um pouco. Hoje, a faxineira está lá em casa. Então, eu caio fora. Muito pó, muito barulho daquele aspirador. Faz mal pra mim.
Então, ela tira o volume de dentro da sacola de tricô que, calculo, ela mesma deve ter feito. É uma sacola colorida, de restos de lã, que deixa o dia um pouco mais bonito. Sim, de alguma forma, seu colorido deixa o dia mais bonito. Ela me mostra a capa do livro e diz:
– Este, ele ganhou de um aluno. Ele ganhava muitos presentes dos alunos, sabe? Era muito querido. Olha que bonito…
Pego o livro de suas mãos com todo o cuidado. Sei do valor que aquilo tem para ela e respeito seu sentimento, sua história, sua saudade. Abro o volume de “Vaga Música”, de Cecília Meireles. Para meu espanto, leio a dedicatória ao professor, filho daquela mulher que está ali, ao meu lado, sob um sol de uma manhã fria de quarta-feira. Meu Deus! A letra da dedicatória é minha! As palavras, fui eu que as escolhi! Eu sou o aluno que, num gesto de carinho e gratidão, presenteou o professor Márcio!
As lembranças vêm todas com rapidez. O cursinho, as aulas dele, os textos que ele lia pra gente, as análises que ele fazia… que tempo bom! Quantos anos! Se hoje gosto de ler, o responsável foi aquele professor. Olho para o rosto daquela senhora – uma mulher ao mesmo tempo tão frágil e tão forte! Ela parece não notar minha surpresa. Indica-me uma página marcada e pede para que eu leia um poema para ela:
– Veja como estes versos têm a ver comigo!
EPIGRAMA
A serviço da Vida fui,
A serviço da Vida vim;
Só meu sofrimento me instrui,
Quando me recordo de mim.
(Mas toda a mágoa se dilui
Permanece a Vida sem fim.)
Tomado de muita emoção, eu a convido para irmos a um café, ali perto, onde poderemos conversar, onde poderei ouvir mais de suas histórias… e onde poderei lhe contar um pouco do seu filho – do qual eu também tenho muita saudade.
5 Comments
Que texto lindo, meu amigo! Parabéns e um forte abraço do Bob.
Que delicia de leitura!!!
Professor, emocionei-me pelo texto, minhas lembranças foram além de, muita coisa lembrei! E pensar que hoje em dia não vemos mais “uma praça e um livro”. E bingo, ela bateu os olhos e acertou na mosca, os mais velhos são notáveis, sensíveis, vividos.
O final desta Crônica me surpreendeu. Não imaginava que o rapaz ouvindo a história da Senhorinha seria aluno do filho falecido dela.
Esta Crônica que mostra Seres Humanos que conseguem serem Humanos em uma Cidade que torna as pessoas mais impessoais ou será que as pessoas sempre foram assim?
Ainda somos brindados com uma poesia de Cecília Meireles.
👏👏 Crônica que enaltece o carinho que falta entre as pessoas ,mesmo as desconhecidas que podem tornarem -se conhecidas e quem sabe Amigas.
Que lindo, que texto maravilhoso e que surpreendente, obrigada.