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SOLIDÃO

“Se procuras a solidão, anda no meio dos homens” – Imre Madách (183-1864), escritor húngaro.

 

Há pelo menos uma hora, estou tentando chamar sua atenção na lanchonete lotada. Já tomei quatro cervejas, comi três pedaços de pizza diferentes, olhei o futebol na TV sem som pendurada na parede e nada…

Vi quando você chegou, bermuda branca, camiseta e boné vermelhos, tênis brancos (de uma marca famosa e cara), o celular na mão, caminhando entre as pessoas e procurando uma mesa na qual pudesse se acomodar. Pensei que você estivesse esperando alguém, então fiquei em silêncio, atrás de minhas latinhas de cerveja importada, observando quem poderia ser a pessoa de sorte que se sentaria ao seu lado. Tudo é maravilhoso, aqui, nos Jardins, a parte nobre da cidade: a lanchonete colorida, o público, os carros que passam, os lanches depositados nas mesas, os casais que se beijam…

Para minha surpresa, você continua sozinho, apenas com uma lata de Coca-Cola e um copo cheio de gelo nesta noite quente de fevereiro. Você só tira os olhos do celular para pedir ao garçom que lhe traga um “Superespecial da Casa”, um sanduíche gigantesco que eu conheço bem. Feito o pedido, abaixa os olhos no celular novamente, alheio a tudo e a todos que o cercam.

Fico observando você e imagino a sua idade – 20 ou 21 anos, no máximo. Você olharia para um homem de 59? O que um rapaz assim pensaria se soubesse que, há uma hora, vem despertando a atenção de um “senhor” como eu? Isso tiraria o seu apetite (o nojo!) ou você sorriria com um ar de quem se acha irresistível, sem falsa modéstia? O que eu provocaria em você? Desdém, desprezo, interesse, desejo, vontade de rir, uma súbita vontade de escrever no grupo de amigos que “um velho tá me olhando aqui na lanchonete e estou achando muito engraçado”? Será que você está esperando a namorada eternamente atrasada? Será que, daqui a pouco, vai se sentar ao seu lado uma moça linda, mas com cara de tédio, que não valoriza o namorado lindo que tem? Será que você é um rapaz bacana pra ela? Há uma hora, bebo, como e penso. Medito e faço conjecturas. Acho que é o álcool…

Tenho todo o tempo do mundo. Nesta noite quente, saí um pouco porque o apartamento estava me sufocando e porque eu não ia conseguir escrever um capítulo bom da novela. Maldito ibope! Escravidão eterna, espinha de peixe entalada na minha garganta. Diretores medíocres; atores piores ainda. Não vejo a hora de terminar esse lixo. Por que fui aceitar escrever uma novela para o horário nobre se eu não estava bem pra isso? Pelo dinheiro, talvez. Certamente, o dinheiro. O dinheiro e a vaidade, claro. Mas essa novela me empata a vida, me tira as horas de sono, me faz atravessar madrugadas procurando o melhor diálogo ou algum recurso para salvar a trama do fiasco completo. Ninguém aguenta mais esta bosta desta novela. Eu, menos ainda! Por isso, rapaz, não volto pra casa tão cedo hoje. No meu relógio, uma e meia da manhã de domingo. Ainda tenho muito tempo. Na verdade, não tenho.

Eu deveria estar escrevendo mais capítulos. Você continua aí, olhando fixamente pro celular, teclando, lendo, rindo sozinho, fazendo cara séria, comendo seu sanduíche enorme, como se o mundo ao redor não existisse, a não ser pela Coca-Cola e pelo lanche. Tenho certeza de que você nunca olhará para mim. Talvez tenha perdido o interesse pelo mundo real, mundo ao qual eu pertenço e do qual eu o observo. Nenhuma chance de perceber que, da mesa ao lado, eu te como com os olhos e gostaria de conversar com você? Nenhuma!

Será que você também é gay? Será que troca mensagens com um namorado distante, de outra cidade, de outro país, por quem você está perdidamente apaixonado? Fico imaginando um rapaz bonito pra você – atlético, também jovem, simpático e atraente. Será que suas famílias sabem do namoro? Os jovens de hoje têm uma liberdade com que a minha geração nunca sonhou… melhor pra vocês, acho!

Pra onde você irá quando terminar o seu lanche? Caminhará pelas ruas do nosso nobre bairro, paquerando alguém a fim de levar a pessoa pra casa? Ou entrará no carro que o pai lhe emprestou e que você deixou no estacionamento da lanchonete? Irá para alguma boate ou já está muito tarde? Esvazio a quarta lata de cerveja, sinto uma sonolência forte, mas me recuso a voltar pra casa: aborreço-me ao lembrar do capítulo inconcluso, o mesmo capítulo que devo entregar até  amanhã à noite. Novela chata! Personagens sem graça! Traições, assassinatos, ameaças, lágrimas e juras de amor dos protagonistas; beijos falsos, maquiagens pesadas por causa da TV em HD; penteados cafonas, figurinos horrorosos, um diretor medíocre, pressão dos patrocinadores… estou com o saco cheio de tudo isso! “Trabalhe melhor o núcleo popular”, manda o diretor. “A atriz principal está descontente com suas cenas”, me confidencia uma maquiadora.

Pra variar, rapaz bonito, eu gostaria de ter uma companhia nesta madrugada. Se ao menos você tirasse os olhos desse maldito celular, eu poderia tentar alguma coisa… mas é inútil: pagarei minha conta, sairei sozinho, caminharei até o meu apartamento (a mil metros daqui); pensarei num bom motivo para aquela vaca daquela milionária morrer nos braços do amante e gerar a revolta dos filhos em um dos capítulos das próximas semanas.

Em meio a tudo isso, vou pensar em suas pernas e em seus braços fortes; levarei comigo a lembrança do seu sorriso – ainda que ele tenha sido para o celular… e não pra mim!

Voltarei para aquele apartamento enorme, para a tela do computador que espera uma história que não consigo mais criar. Do caixa, olho pra você uma última vez. Você tecla, tecla e tecla…

E a noite está tão bonita lá fora!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

0 Comments

  1. Professor, essa Crônica veio ao meu encontro! Vejo pessoas, paquero, às vezes me olham, às vezes, não! Olho para o impossível diariamente, estou olhando agora. Encerro meu expediente, e o impossível continua sendo impossível, amanhã será mais um dia.

  2. Clarice keri disse:

    Que delícia de paquera, pena que ficou só nisso, adorei.

  3. Baltasar Pereira disse:

    Fiquei vendo desenrolar em minha mente, como em um Filme ,toda a história desta Crônica.

    Desde o início quando o personagem principal começa a falar do rapaz.

    Eu imaginava a tensão, o desejo do Escritor de Novelas e vamos tendo idéia sobre o personagem principal.

    Crônica que mostra o cotidiano de pessoas comuns em sua Vida.

    👏👏

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