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WANDO… QUEM DIRIA!

Chegou-me às mãos o livro “Teletema – a história da música popular através da teledramaturgia brasileira de 1964 a 1989”, de Guilherme Bryan e Vincent Villari. O volume (de 2014) é interessante, principalmente para pessoas que, como eu, cresceram com os poucos canais abertos da TV, assistiram a muitas telenovelas e curtiram muito as músicas que faziam parte de suas trilhas sonoras.

Os autores informam que a ideia de se produzirem duas trilhas para cada novela – uma nacional, lançada no início da trama, e uma internacional, incluída alguns meses depois – foi do diretor da Som Livre, João Araújo. Claro que a Globo faturou e muito com isso! Era o próprio João quem escolhia as faixas dos discos internacionais logo após receber as sinopses da história. Cada personagem ou par romântico tinha seu “tema musical”, e a música grudava de uma maneira inapelável. Quem não se lembra de “Rock And Roll Lullaby”, com BJ Thomas, tema de Simone e Cristiano, personagens da primeira versão de “Selva de Pedra”, de 1972, por exemplo?  

Como não havia internet e essa coisa toda de “streaming”, a moçada era doida para comprar o “disco da novela”. Tínhamos uma vizinha que comprava absolutamente todos – os nacionais e os internacionais – de todas as novelas que a Globo punha no ar!

Bem, entre 05 de março e 02 de junho de 1979, no horário das 18h, o citado canal exibiu a novela “Memórias de Amor”, uma adaptação de Wilson Aguiar Filho para o romance “O Ateneu”, de Raul Pompeia. O livro tem caráter memorialista e conta a história de Sérgio e sua experiência como interno no Ateneu, um colégio onde estudam os filhos da rica burguesia carioca do século XIX. Nessa instituição, o menino de 11 anos vai aprender a viver em uma sociedade corrupta, onde sobrevivem os mais fortes.

Segundo Ismael Fernandes, em seu “Memória da Telenovela Brasileira”, de 1997, a novela foi “uma infeliz escolha de um romance, para o horário das 18h, cuja tônica central é mostrar o relacionamento entre os adolescentes num ambiente fechado, corrupto e impregnado de sexualidade. Adaptá-lo, portanto, foi um ato de heroísmo em vão”.

Enquanto, no romance, o sensível Sérgio vive situações de uma homossexualidade latente (tema para um outro texto!), na novela ele se apaixona pela filha do dono do Ateneu, o autoritário monarquista Dr. Aristarco Argolo de Ramos (Jardel Filho). No papel da moça, Myriam Rios; no papel do protagonista, Maneco Bueno.

Bryan & Villari escrevem: “A trilha sonora dessa novela, produzida por Guto Graça Mello e Otávio Burnier, com pesquisa de repertório de Arnaldo Schneider, traz uma curiosa canção de Wando, ‘Emoções’, que narra, de forma velada, uma relação homossexual: ‘Nos fizemos tão meninos, livres, tão vadios, de tanto querer / Nus, fizemos poesia para chorar do riso, pra sorrir da dor / Me entregaste teus segredos, eu falei do medo do meu coração / Assim pisamos noite adentro como dois perdidos cheios de emoção (…) / A Lua iluminou teu corpo moreno, bonito, pra me provocar / No teu rosto um riso lento misturado ao pranto vi desabrochar / Te agasalhei nos braços, pele, mãos, espaços, acariciei / Te amei suavemente e tão docemente eu me fiz teu rei’. Esta música – prosseguem os autores – estaria perfeitamente adequada à novela se a adaptação fosse fiel ao livro, no qual é latente a tensão sexual entre Sérgio e os colegas do internato (…). Mas, diante das limitações impostas pela censura, o autor fez Sérgio se apaixonar por Maria, personagem que não existia no livro”.

O mais interessante é o comentário do próprio Wando (Wanderley Alves dos Reis, 1945-2012), cantor famoso por músicas românticas e pelas calcinhas que suas fãs lhe jogavam no palco, o que lhe rendeu o apelido de “obsceno” por parte dos mais conservadores: “Ela (a canção) tem essa conotação homossexual porque a homossexualidade, principalmente naquela época, era algo que tinha de se manter escondido, e eu tinha lido um livro que falava de duas pessoas que estudavam em um colégio e só no final é que se descobre que eram dois homens. Achei tão interessante que resolvi fazer essa música, deixando a coisa nas entrelinhas. As pessoas não prestam muita atenção, mas acho que essa é uma das boas letras que fiz. O gozado é que a música não entrou com essa intenção na novela, mas como tema para a Sandra Bréa”.

 Eu não me lembrava de ter ouvido essa canção. Acho mesmo que não a conhecia. Ela é bonita, poética, sensível. O arranjo é bonito, muito bonito também.

Para quem tinha a imagem de Wando como um cara que cantava apenas o amor heterossexual de forma mais picante, essa música e toda a história que a envolve são uma grata surpresa. Que bom descobrir essas pérolas escondidas no nosso cancioneiro! E que bom que a burra censura não nos privou de uma canção tão bonita!

Palmas para o cantor mineiro que tão cedo nos deixou. 

Link para a música:

https://www.youtube.com/watch?v=cG2DcV3xVb8

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Baltasar Pereira disse:

    Realmente as músicas de Wando sempre me passaram a conotação de Música entre casais Heteros e me pegou de surpresa esta pérola entre suas músicas, onde a Homossexualidade fica nas entrelinhas em uma Época onde o tema não podia vir a tona.
    Deu-me vontade de ler “O Ateneu” ,pois nunca o li.
    Acredito que o Diretor da Som Livre era o Pai do Cazuza.
    Não sabia que ele tinha pensado em Trilhas Sonoras Nacionais e Internacionais para as Novelas.
    Comprei muitos discos de algumas novelas.
    Tenho Saudades destes momentos em que nem TV a cabo existia e nem imaginávamos que um dia existiria.
    Bela Crônica que para mim trouxe novidades e eu sempre gosto de aprender ou relembrar.
    👏👏👏

  2. Roberto disse:

    Parabéns, meu amigo! Sempre aprendemos com as suas crônicas. Abraços, Bob

  3. Professor, tenho recordações deste disco! A faixa “Emoções” está no LP “Gosto de Maçã”, música que tocou tanto, mais tanto que o disco até furou.
    Em 1978, eu trabalhava na estação de rádio local, a Pinhal Rádio Clube, era sonoplasta, atuava também como redator: os textos grafados por mim eram ruins, sempre corrigidos pelos veteranos, estava com 14 aninhos.
    Lembro-me que algumas vezes tocávamos essa música (Emoções), só que ninguém sabia o que a letra queria dizer, qual era o significado, fui “pego de surpresa”. Depois de muitos anos, mais de 40, através da sua Crônica, passamos a saber o que ele realmente estava querendo dizer.
    Wando estava além do seu tempo.
    Parabéns pela publicação.

  4. Clarice keri disse:

    As vezes você me parece uma enciclopédia, não tinha idéia de nada disso, mas me lembro da minha mãe assistindo, e o Wando, quem diria, compôs uma letra tão inteligente, obrigada por mostrar tudo isso.

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