Uma cidade vai ficando feia quando os cinemas de rua vão sendo fechados porque não há mais ninguém para ocupar suas cadeiras, já que todos migraram para as salas de shoppings, com medo de assaltos e da violência. Aliás, uma cidade vai ficando muito, muito feia quando as pessoas sentem medo de andar por suas calçadas antes repletas de cidadãos distintos e elegantes.
Uma cidade vai ficando feia quando suas livrarias vão cedendo lugar para lojas de roupas baratas e mal feitas, com segurança na porta, porque o risco de roubo é muito grande. Uma cidade vai ficando feia quando essas livrarias também dão lugar às numerosas lojas de apetrechos para celular: ganha-se em tecnologia, perde-se em saber e conhecimento.
Uma cidade vai ficando feia quando os prédios de seus tradicionais colégios são pichados com frases ora de protesto (como se adiantassem alguma coisa!), ora com xingamentos ou ofensas gratuitas. E a cidade vai ficando feia na mesma medida em que essas escolas são negligenciadas pelos alunos que rabiscam seus muros e pelas autoridades que nada fazem.
Uma cidade vai ficando feia e muito suja quando sacos e contêineres de lixo são revirados por pessoas com fome, à procura de restos de comida. Uma cidade vai ficando feia e triste e cheia de vergonha quando os versos de Manuel Bandeira se fazem lembrar porque não perderam sua atualidade, ainda que tenham sido escritos no século passado. Eles dizem:
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Uma cidade vai ficando feia (problema menor do que o anterior) quando suas pseudopraças não têm verde, não têm árvores, só o concreto. Mais cimento do que plantas. Uma cidade vai ficando feia e escura quando outras praças tradicionais são abandonadas pela prefeitura e pela população. E o lixo vai se acumulando.
Uma cidade vai ficando feia quando as pessoas insistem em jogar saquinhos de biscoitos e latinhas de refrigerante pela janela do ônibus. Além do resto de cigarro que o caminhante também joga na rua quanto termina de fumar.
Uma cidade vai ficando mal cheirosa quando os fãs dos “pets” não limpam a sujeira que o simpático cachorrinho ou o imponente cachorrão fizeram na calçada. Os bichos, vê-se logo, não têm culpa alguma.
E, por falar em calçada, contribuem para a cidade feia os buracos e valetas que impedem o caminhar de pessoas idosas ou o deslizar de suas cadeiras de rodas quando precisam fazer uso desse recurso. Como é feia uma cidade com calçadas cheias de buracos!
E o que falar de prédios históricos invadidos e deteriorados? A gente se lembra do filme “Sábado”, de Ugo Giorgetti, uma comédia deliciosa, mas triste ao mesmo tempo. Há também os lugares “lacrados” com cimento e tijolo para que não sejam invadidos – lembro agora de um dos cinemas da minha juventude, o Comodoro, na avenida São João, onde a moçada via filmes e mais filmes no fim de semana. Tudo agora com paredes de tijolos, despertando na gente uma saudade que dói.
Uma cidade também perde seu charme quando suas lojas famosas vão virando estacionamentos para carros, como aconteceu ao Museu do Disco, ali perto do Teatro Municipal. Poder comprar discos lá era um sonho na minha adolescência.
Uma cidade vai ficando feia e hostil quando motoristas de carros e de ônibus vão disputando as ruas com motociclistas numa selvageria assustadora – tudo isso, em última análise, oferecendo perigo aos pedestres. Uma vez, ouvi num programa humorístico: “O Brasil é um país em que você tem que olhar pros dois lados ao atravessar uma rua de mão única”. Exatamente!
Uma cidade vai perdendo sua beleza e encanto quando a hostilidade e a intolerância imperam e ela reflete um dos mais tristes índices de violência: o País é, pelo 14º ano consecutivo, o lugar onde mais se matam transexuais no mundo. A violência é sempre triste!
Tudo isso vai deixando a cidade muito feia e melancólica. E os indivíduos, numa relação de causa e efeito, vão também se tornando fechados em si mesmos, hostis, perdendo a gentileza e a educação.
Enquanto as cidades vão ficando decadentes, políticos se elegem com falsas promessas e enriquecem durante dois, três mandatos – sem olharem, pela janela de seus luxuosos gabinetes, o que se passa aqui fora.
E as pessoas vão, com nojo, evitando as ruas da cidade, sem perceberem que elas também são responsáveis por essa decadência quando elegem esses governantes.
6 Comments
Obrigado por colocar (brilhantemente) em palavras o que tenho sentido com frequência no fundo da alma, quando caminho pelas ruas da minha querida, esquecida, maltratada São Paulo.
Professor, belíssima Crônica! O que está grafado é a mais pura realidade, estamos vivendo na cidade que resido, também. Fiquei emocionado, lembrei-me de tanta coisa, tanta coisa. Nossos governantes, ah, eles deixam a desejar. Escrevo algumas coisas sobre a política da minha cidade, chego a ser um crítico ferrenho, porém sempre coeso. Algumas frases que publico: “as coisas só acontecem no ferrão”, “elas só acontecem com um cutucão”.
Olá Prof. Vitor
Brilhante crônica. Tudo está dito
É só abrir os olhos e girar o corpo 360 graus.
Tudo o que foi dito na crônica estará na sua frente
Parabéns
São Paulo que era terra da garoa está muito judiada, mal cuidada e bem feia. A violência é o principal problema que temos quando saímos de casa, na minha opinião. Esse texto relata de maneira impecável os problemas da nossa metrópole, mas eu não suportaria a vida no campo. Sou da metrópole, meu amigo! Parabéns e um forte abraço, Bob
Nossa, com certeza você falou pouco mas disse tudo, muito bom.
Muito boa,mas muito boa mesmo esta crônica ao expor a nossa Cidade de São Paulo e poderíamos dizer também,tantas outras Cidades pelo Brasil e Mundo .
Infelizmente é uma triste realidade aqui mostrada em sua versão nua e crua.
Como a Poesia de Manuel Bandeira está atualizada.