A CIDADE
4 de fevereiro, 2023
PASSADO
6 de março, 2023
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BURT BACHARACH

“Com um sonho em seu coração, você nunca está sozinho” – (“Do you know the way to San Jose?”) – BB & Hal David.

 

Era o mês de dezembro de 1999. Nova York estava tomada pelo ar gelado que vinha do rio Hudson e o vento cortava a Times Square. Ainda assim, hordas de turistas enchiam lojas, cafés e restaurantes. Era meu último dia na cidade – malas feitas, hotel pago, o negócio era aguardar o táxi que me levaria ao aeroporto, onde eu pegaria o voo para o Brasil. De repente, vi e fui visto por alguém. Olhares trocados, a aproximação e uma conversa na qual prometemos nos encontrar novamente, mas na costa oeste, em Los Angeles, onde ele morava. Foi um envolvimento intenso, ainda que durasse poucos dias e a dor da separação. A música que ficou, claro, só poderia ser aquela em que Christopher Cross canta: “Se você for apanhado entre a Lua e a Cidade de Nova York / o melhor que pode fazer é se apaixonar”.

Conto resumidamente essa história pessoal para falar de Burt Bacharach, que, com sua esposa Carole Bayer Sager, Peter Allen e o próprio Christopher Cross, ganhou um Oscar de melhor canção com “Arthur´s Theme (Best that you can do)”, em 1982.

Fico imaginando quantas e quantas músicas Mr. Bacharach e seus parceiros (o mais famoso foi Hal David) compuseram e se tornaram a trilha sonora de centenas de pessoas no mundo inteiro. De trilhas de filmes às novelas brasileiras, de especiais de TV a LPs memoráveis que tornaram mais elegantes reuniões e jantares nas décadas de 60, 70 e até 80 do século passado.

Burt Freeman Bacharach nasceu em 12 de maio de 1928, no estado do Missouri, mas cresceu no Queens, no estado de Nova York. Depois de muito estudar música, o judeu “que não praticava muito o judaísmo”, segundo ele mesmo, foi recomendado a Marlene Dietrich, que precisava de um arranjador e um maestro para seus shows nas boates. Fizeram várias turnês mundiais juntos e, claro, acabaram tendo um caso bastante famoso. Chegaram a vir ao Brasil, e aqui ele se apaixonou pelo Baião e pela Bossa Nova. É fácil ver a influência dos dois ritmos em composições como “Mexican Divorce” e “Do you know the way to San Jose?”, respectivamente.

Embora tenha sido gravado por muita gente, sua grande intérprete foi Dionne Warwick. Foi na voz dela que o mundo conheceu preciosidades como “Walk on by”, “I say a little prayer”, “Alfie”, “Always something there to remind me”, “I´ll never fall in love again” e muitas outras. Pode-se dizer que Dionne foi descoberta por Burt, e os primeiros sucessos dela foram “Don´t make me over” e “Here I am”.

Por aqui, a TV Globo usou uma outra linda canção de Burt & David: “Long ago tomorrow”, na voz de BJ Thomas, fez parte da trilha sonora internacional da novela “O primeiro amor”, de 1972. Aliás, foi com Thomas que Burt e David ganharam seu primeiro Oscar: quem não se lembra de “Raindrops keep falling on my head”, do filme “Butch Cassidy & Sundance Kid”, como a dupla Robert Redford e Paul Newman, de 1970?

Sobre sua relação com o cinema, Burt relata em sua biografia, “Anyone who had a heart”, que entrou em profunda depressão por causa do fracasso de “Horizonte Perdido”. De acordo com Angie Dickinson, sua mulher à época, “Burt começou a trabalhar em ‘Horizonte Perdido’ em 1971 ou 1972 e acabou sendo o maior fracasso de sua carreira. Todo compositor passa por isso. Foi um fracasso monumental. Foi uma humilhação pública e Burt isolou-se em Palm Springs. Ele não era uma pessoa intratável, mas estava deprimido e isso afetou tudo na vida dele, incluindo nosso casamento”.

O saldo, contudo, foi muito positivo: na longa carreira, Bacharach acumulou seis prêmios Grammy, dois Emmys e três Oscars. A revista Rolling Stone publicou uma lista na qual Burt e Hal estão na posição de número 32 dos “100 Melhores compositores de todos os tempos”. Na minha modesta (porém sincera) opinião, estão bem acima disso!

Entre tantas alegrias, sucessos  e homenagens, pode-se dizer que a grande tragédia de sua vida diz respeito à filha Nikki. “Nikki tinha 34 anos quando descobrimos o verdadeiro problema dela. Sua incapacidade de interagir com outras pessoas, sua total falta de empatia e todo o comportamento compulsivo e obsessivo que Nikki demonstrava desde criança eram sintomas de uma forma de autismo conhecido como Síndrome de Asperge”, escreve Burt em sua biografia. Ficou em clínicas durante muito tempo, sofreu bastante. Burt fala com tristeza do desconhecimento da doença e do diagnóstico que veio quando Nikki já era adulta. Depois de muito lutar contra a enfermidade, a moça se suicidou em 2007. Burt e Angie não estavam mais juntos.

Em abril de 2013, tive o prazer de ver um de seus shows aqui em São Paulo. Fui com duas amigas e um amigo, e tivemos a certeza de que, ali, no palco, estava uma lenda do mundo da música. Dionne Warwick não estava junto, mas ouvir aquelas músicas todas e ver aquele senhor de cabeça branca ao piano foi uma sensação incrível! Um pouco da história ao vivo e em cores se desenrolava na nossa frente.

Burt Bacharach foi gravado, além dos já citados, por gente como Aretha Franklin, Frank Sinatra, Beatles, Carpenters, Barbra Streisand, Jack Jones, Astrud Gilberto, The Drifters, Tom Jones, Doris Day, Petula Clark, Johnny Mathis e muitos outros. Em 2019, Bruce Springsteen gravou o lindo disco “Western Stars” e afirmou: “Tem muito de Burt Bacharach nestas músicas”.

O grande compositor morreu em 8 de fevereiro de 2023, com quase 95 anos. Em outra passagem de sua biografia, ele conta que “meu pai queria me dar o mesmo nome dele; aí seríamos o Grande Bert e o Pequeno Bert. Minha mãe não queria que eu fosse chamado de Bertram e aí me colocaram o nome de Burt, que é muito parecido com o do meu pai. Pra acabar com a confusão, minha mãe decidiu me pôr o apelido de ‘Feliz’. Não sei se eu era feliz quando criança. Lembro que eu era solitário na maior parte do tempo”. Talvez essa solidão tenha ajudado a moldar o artista…

Ouço sua música com muita frequência. “Mexican Divorce”, “One less bell to answer”, “Wives and Lovers”, “Heartlight”… são tantas! Elas me lembram de um tempo mais sofisticado, mais bonito, com mais classe e charme. Só de escrever este texto, já fiquei com vontade de ouvir.

Abaixo, o link da cena do filme “O casamento do meu melhor amigo”. Inesquecível! Burt Bacharach!

 

https://www.youtube.com/watch?v=raEbrKPBoyQ

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Ricardo Cano disse:

    Lindo registro da trajetória desse ícone da música!
    Com certeza não teremos um substituto à altura tão já…

  2. Baltasar Pereira disse:

    Bela Trajetória de um Grande Compositor. Claro,que com suas Alegrias e dores. Suas músicas nos deleitam e são tão gostosas de serem ouvidas . Grandes Intérpretes para Grandes Composições.
    Gosto muito de suas músicas e inclusive fiz uma imersão nas mesmas nestes últimos dias.
    Interessante saber que escreveu uma Biografia.
    Lances bem interessantes.
    Bela e Merecida Homenagem a este Grande Compositor.
    👏👏👏👏

  3. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Belíssimo texto. O próprio Burt ficaria feliz se o pudesse ler.
    Parabéns
    Grande abraço

  4. O que falar de Burt Bacharach? Passaria horas, dias e não conseguiria escrever absolutamente o que gostaria. Professor Vitor assim o fez, uma homenagem mais que merecida. Tenho uma história com a favorita do Burt, Dionne. Lá pelos ano de 1978, comecei a trabalhar na estação de rádio da cidade que resido, além de sonoplasta, eu era discotecário também, não conhecia nada, absolutamente nada de música. Houve um dia que por acaso peguei um LP, e de cara me perguntei quem era a cantora, simplesmente Dionne Warwick, e o álbum “Soulful” de 1969. Para mim não fazia diferença alguma, não conhecia suas músicas, não sabia quem era. O locutor me disse: “vamos tocar a primeira faixa do lado A”, “You’ve lost that lovin’ felling”. Naquela época eu não tinha noção do disco que eu estava manuseando. Depois de muitos anos, muitos mesmo fui ouvir todo o álbum, me apaixonei. E como não se apaixonar? Uma das faixas que mais gosto desse disco é a “People get ready” do Curtis Mayfield. Burt nos deixou muita coisa boa. Belíssima homenagem.

  5. Clarice keri disse:

    Linda homenagem, adorei le-la, obrigada.

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