Um amigo me manda um link do portal G1 (24.03) com uma matéria cujo título é: “Escola dos EUA demite diretora após alunos virem imagem da escultura de David, de Michelangelo”. Já o Estadão (26.03) traz a mesma notícia, mas com uma manchete diferente: “Diretora pede demissão após reclamações sobre o nu da estátua de ‘David’”.
Bem, independentemente de ter sido demitida ou de ter pedido demissão, o ocorrido com a diretora Hope Carrasquilla é lamentável, mais ainda por ter ocorrido no “pobre” estado da Florida, onde o governador Ron (Ronald) DeSantis, considerado um legítimo herdeiro de Trump e suas barbaridades, proibiu os professores de falarem com os alunos mais jovens sobre qualquer assunto relacionado às pessoas LGBT+. O projeto de lei é conhecido por HB1557 e foi apelidado de “Don´t say gay”. DeSantis, logo se vê, é do partido Republicano. Republicano de raiz, como se costuma dizer.
Voltando à questão da estátua, não é bem de hoje que a obra do gênio italiano causa polêmica. O nu (masculino ou feminino) sempre dividiu opiniões e sempre causou um misto de espanto, indignação, sedução, curiosidade e interesse. Basta que se lembre do impacto das primeiras revistas como Playboy ou Penthouse. Por aqui, lembro bem como, nos anos 80, as revistas com nus masculinos chocaram as pessoas mais conservadoras – acostumadas ao nu feminino, achavam o fim do mundo que um homem posasse pelado também.
Uma vez, tive a oportunidade de viajar com alguns amigos à Itália. Lá, visitamos várias cidades, e fiquei maravilhado como qualquer um que vai àquele país. Fotos e mais fotos, visitas a museus, passeios a lugares históricos etc. Na hora do “David”, um do grupo não quis tirar uma foto na parte da frente da estátua: onde já viu um homem tirar uma foto diante de um pênis esculpido? E ele não tirou!
Escrevo enquanto está ocorrendo em São Paulo a exposição “Michelangelo: O mestre da Capela Sistina”, no MIS Experience, ali no bairro da Água Branca, encostadinho à TV Cultura. Como diz o anúncio, “pela primeira vez no país uma exposição conta com projeção mapeada no teto e nas paredes; 14 salas, distribuídas em mais de mil metros quadrados, convidam os visitantes a um mergulho na capela mais famosa do mundo”. Fui e recomendo: a visita vale a pena! É um mergulho lindo e fantástico na obra do artista do Renascimento. Agora, é bom prevenir os “republicanos”: na saída, uma reprodução da estátua do David prontinha para quem quiser tirar uma foto e mandar para os amigos ou postar nas tais redes sociais. E convenhamos: se Michelangelo tivesse feito o “instrumento” do rapaz na mesma proporção da estátua, aí é que teria sido um show de horrores por parte dos puritanos de plantão!
Também no Estadão (25.03), leio uma pequena matéria com a chamada: “Censura de livros bate recorde nos EUA, denuncia organização – obras da ou sobre a comunidade LGBT+ e de ou sobre pessoas não brancas quase dobraram os números de 2021”. Segundo a matéria, a American Library Association (ALA) relata que “foram recebidas 1269 solicitações de censura a livros em território americano”. Voltamos à Idade Média? A Inquisição não terminou e a gente não estava sabendo?
Há um ótimo filme de 1956, com a sempre grande Bette Davis, chamado “No despertar da tormenta” (“Storm Center”), com a direção de Daniel Taradash. Na trama, Bette interpreta Alicia Hull, uma bibliotecária viúva e dedicada aos livros, em uma pequena cidade de Nova Inglaterra. Uma de suas alegrias é apresentar às crianças os prazeres da leitura. Em troca de seu desejo de uma ala infantil na biblioteca, o conselho municipal pede-lhe para que retire de sua estante um livro considerado comunista. Ao corajosamente se recusar, Alicia enfrenta as consequências trágicas da histeria que tomou os americanos por ocasião do macarthismo. Segundo os críticos, esse foi o primeiro filme anti-macarthismo produzido em Hollywood.
Ele está disponível no Youtube, mas com legendas apenas em inglês. Infelizmente, acho que nunca foi lançado no Brasil em DVD ou Blu-ray.
Estátuas, livros, filmes, músicas… obras de arte sendo censuradas e/ou canceladas – pra usar um termo que está na moda. Toda essa política vai nos jogando cada vez mais no fundo do poço da mediocridade e da ignorância.
Minha mãe costumava me dizer: “Cuidado com as pessoas puritanas demais: normalmente, elas fazem pior do que aquilo que censuram quando a gente vira as costas”. E a minha avó avisava: “Quando você aponta o dedo, acusando alguém, pelo menos três dedos da sua mão se voltam pra você!”. Exemplo? O autor do projeto de lei do tal “Don´t say gay”, na Florida, Joe Harding, foi indiciado por fraude e lavagem de dinheiro. Segundo o Departamento de Justiça americano, “Harding obteve de maneira fraudulenta mais de 150 mil dólares destinados aos empréstimos para auxílio às vítimas da covid, provenientes da Small Business Administration – SBA”.
É isso!
8 Comments
Que mundo podre é esse que estamos vivendo! Parabéns por mais esse belo texto, Vitão. Forte abraço, Bob
Olá Prof Vitor
Parabéns pela crônica. Excelente. Acho que o preconceito e a ignorância parecem ser eternos. Lembro na década de 1990 a proibição em escolas dos Estados Unidos das aulas sobre Evolução. E agora em pleno século 21, novamente essas bobagens.
Oh Lord
E viva o rei Davi! 😉
Não estava sabendo deste fato ocorrido nos Estados Unidos há poucos dias e no “pobre” Estado da Flórida.
É de ficar assustado com o que está ocorrendo em nosso Mundo .
Parece que em alguns assuntos estamos retrocedendo.
Lembro-me do Filme com a Atriz Bette Davis e como está atual o tema sobre Preconceito .
Concordo com a Mãe e a Avó do Cronista sobre Pessoas muito puritanas.
Enfim,triste realidade deste Século XXI.
Bela Crônica e assustador o que mostra a mesma sobre o Mundo Atual.
Será Mundo Atual? Ou estamos voltando no Tempo?
Voltamos ao tempo da caça às bruxas,infelizmente nosso mundo se afunda em sua própria hipocrisia.Sua sensibilidade ao retratar o tema apenas revela seu brilhantismo.Parabéns!!!!
E viva o rei Davi! 😉
Professor, preconceito e ignorância sempre eternos, que coisa! Sua avó e mãe estavam certas, certíssimas
Ótima crônica, como sempre você fala pouco mas diz tudo, e falar sobre um sentimento tão mesquinho da humanidade não deve ser fácil, obrigada.