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O ESPELHO

– Teu pai morreu.

Aquelas palavras foram ditas assim, sem que ele tivesse tempo de acordar direito, lavar o rosto, tomar um café, pôr uma música, checar o celular, abrir as cortinas, olhar o movimento da rua lá embaixo. Não! Mal atendeu o telefone fixo – para o qual só a mãe ligava –, a voz dela cortou o silêncio. Voz metálica, direta, como sempre fora nas horas mais críticas da família.

Não se deu o trabalho de perguntar “como” nem “por quê”: a agonia de meses chegava ao fim, e ele sabia que haveria todo um ritual a ser cumprido naquele sábado. Olhou para o relógio, que marcava 9h da manhã. Respondeu um “tá bom, mãe” e acrescentou, logo em seguida, que “devo chegar ao cemitério por volta da 1h da tarde”.

Surpreendeu-se ao dizer isso, pois, na verdade, não tinha vontade de se juntar ao irmão e às três irmãs e aos cunhados e sobrinhos para ver o pai ser enterrado no jazigo da família, onde já se encontravam os avós paternos e os maternos. Procurava não se lembrar do irmão caçula que morrera no parto. Esse, ele tentava não contar, mas era inútil: mesmo sem ter convivido com aquele bebê, entristecia-se quando se lembrava dele.

Virou-se para o outro lado, procurou pegar no sono de novo. Naquela manhã, fato raro, estava sozinho naquela cama, naquele quarto, naquele apartamento. Tinha ido à boate na noite anterior e não tinha saído de lá com ninguém. Esticou o braço, pôs uma música no celular. Deixou a música bem baixa e suave… quem sabe, assim, cairia no sono novamente! Nada. Por um momento, odiou aquele telefonema. Admitiu que seria inútil ficar rolando debaixo daquele edredom fofo e macio, perfumado e confortável. Com má vontade, levantou-se e foi diretamente ao banheiro aliviar a bexiga que, cheia, provocara-lhe uma ereção.

Olhou-se no espelho. Passou a mão pela barba espessa, grisalha, os cabelos da mesma cor, bem curtos, e perguntou-se se seria de bom tom fazer a barba para encontrar aquela gente toda que ele não fazia a mínima questão de ver – tios, primos, amigos do pai etc. De repente, deu-se conta de estar olhando fixamente nos próprios olhos refletidos no espelho. O reflexo do que tinham sido todos esses anos de maturidade, crescimento e solidão. Observou e coçou o peito coberto de pelos também grisalhos. Ficou ali, olhando-se e pensando em quanto tudo havia mudado naqueles seus 49 anos de vida.

Algumas lembranças começaram a vir à sua mente, como uma chuva de verão que não se espera, mas que vem, nem que seja para durar pouco. Quadros de situações vividas em família na companhia dos quatro irmãos, na casa dos avós, na casa da praia, na companhia de tantos amigos que ele não encontrava fazia tanto tempo! Lembrou-se da escola, dos professores, da namoradinha que fez com que ele tivesse certeza de que ele era, realmente, gay. Quantos anos ele deveria ter? Ah… uns 14…

Lembrou-se da inesquecível tarde de domingo no início dos anos de 1970. Aquela tarde de domingo! Depois do almoço, seu pai estranhamente o convidou “para um passeio de carro”. Só os dois. Os irmãos todos assistiam à TV, enquanto a mãe lavava a louça do almoço na companhia da sogra e de duas cunhadas. Ninguém ouviu quando os dois entraram no carro e saíram da garagem mansamente.

O pai ligou o rádio e, sorrindo, disse que gostaria de conversar um pouco com o filho, a sós, sem a intromissão da família que enchia aquela casa domingo após domingo. Ele não se deu conta do tom da voz do pai e, sem qualquer preocupação, abaixou o vidro do carro e deixou o vento bater em seu rosto. Distraidamente, foi cantando com o rádio, enquanto olhava a paisagem lá fora.

Tomaram o caminho do Pico do Jaraguá, onde sua mãe, ela contava, fizera muitos piqueniques na juventude. O pai seguia dirigindo em silêncio. Tomou o rumo do ponto mais alto, lá onde os turistas costumavam tirar fotografias da cidade aqui embaixo. Depois de um tempo, achou estranho que o pai não trocasse uma palavra com ele durante todo o trajeto. Procurou sondar os pensamentos do outro, mas aquele homem, sempre distante, não demonstrava nada em seu rosto. Apenas prestava atenção ao trânsito.

Foi só ao chegarem lá em cima que, desligando o rádio, o pai começou a falar, sem lhe dirigir o olhar, sempre mirando as pessoas lá fora. Seu tom de voz era baixo, as mãos agarravam o volante com força, e o menino pôde notar que as veias saltavam do braço do homem.

– Eu trouxe você aqui hoje porque tenho uma coisa muito importante pra dizer pra você. O seu Joaquim, lá do bar da esquina de casa, disse que viu você e o filho do seu Mário de brincadeiras esquisitas um com o outro. Olha: filho meu não me faz passar vergonha no bairro diante de outros homens, não. Conheço todos desde muito tempo. Filho meu se comporta como macho porque homem é homem – e se comporta como homem! Filho meu não fica assistindo novela e ouvindo disco de novela à noite. Filho meu é macho e me faz sentir orgulho de ter trazido o cidadão pro mundo. Não criei você, nem seu irmão, para serem maricas, muito menos para serem motivo de gozação na vizinhança. Não vejo você sair com seu irmão, não vejo você com as meninas da rua; você ainda deve ser virgem – coisa em que posso dar um jeito. Levo você pra zona e pronto!

Tudo isso eram palavras secas, cortantes, que o pai ia falando sem olhar para a cara do filho. O menino, confuso, não sabia o que fazer. Sair correndo? Abrir a porta do carro e sair correndo? O absurdo de tudo aquilo o confundia. Misto de medo e vergonha. A frieza do pai o assustava e a ameaça real o levou ao pavor de uma surra ou coisa pior. Se tivesse olhado para o seu rosto, o pai teria percebido a angústia e o desespero do filho. Lá fora, a chuva começava a cair em pingos grossos; depois, transformou-se numa tempestade. Os vidros do carro levantados só contribuíam ainda mais para a claustrofobia. A chuva torrencial não deixava que se enxergasse nada lá fora. As mãos pequenas do garoto molhadas de suor; vontade de chorar.  

Ainda sem olhar para o rosto do rapaz, o pai prosseguia, sempre em tom de ameaça:

– Se eu souber que você fez sua mãe chorar ou seu irmão brigar na rua por sua causa, eu juro que te mato. É assim que a gente faz com maricas lá na minha terra. Se, por acaso, eu souber qualquer coisa de você que envergonhe a família, ponho um fim à sua vida, moleque. Não admito esse tipo de coisa na minha casa. Sem-vergonhice, não! Quero que você tenha um comportamento de homem. Não me obrigue a lhe dar uma sova: posso perder os limites e acabar com sua vida. Quando estou com raiva, fico cego. Não mando você embora de casa agora porque você infelizmente é menor de idade. Fazendo 18 anos, a porta da rua é a serventia da casa! Não quer se um homem decente, vá levar a vida longe de nós. Caso eu tenha que levar essa conversa com você, de novo, não respondo por mim. Acho que estamos conversados. Você entendeu tudo o que eu disse?

Ele não respondeu. Simplesmente, estava assustado demais para pronunciar uma sílaba que fosse. Apenas fez que “sim” com a cabeça e pensou realmente em morrer. Ser uma vergonha pra família era pior do que a morte. Teve a certeza.

Depois daquela conversa, quanta coisa mudou! Levou uma vida mais reclusa, esperando sua maioridade. As conversas monossilábicas com o pai. Só o inevitável. Quando fez 18 anos, a pretexto de ir pra faculdade, saiu de casa. Afastou-se de todos, menos da mãe, a quem ia visitar sempre durante a semana, pois sabia que o pai não estaria em casa. Com ele, falava casualmente pelo telefone, quando ligava para a mãe e o pai atendia. Depois que foi morar com amigos, ausentou-se de festas de fim de ano, de aniversários e de casamentos do irmão e das irmãs. Nunca teve a certeza de que sua mãe soubesse ou não da conversa no Pico do Jaraguá. Também nunca teve coragem de mencioná-la. Provavelmente, ela nunca tinha sabido… e punha no filho a culpa do afastamento e da sua ausência nas reuniões da família. Menino esquisito que não gostava de ninguém.

– Você se afastou da gente. Não pode! Família é família. Muita gente pergunta por você. Eu nem sei o que responder direito.

Durante todos aqueles anos, o pai também se manteve longe – física e emocionalmente. Depois daquele domingo, afastou-se do filho por completo. Nenhum abraço, nenhum sorriso, nada! Eram dois estranhos.

Agora, passados tantos anos, olhando-se no espelho, com a notícia da morte do pai, aquela tarde medonha de domingo veio-lhe com uma força assustadora. Lembrou-se da roupa que vestia, do carro do pai, da roupa dele, da chuva que caía… lembrou-se de tanta coisa! Sorriu para si mesmo no espelho, um sorriso triste e amargo, ao se dar conta de que, ironicamente, aquela havia sido a única vez em que seu pai tivera uma conversa a sós com ele – e fora para ameaçá-lo!

Tomou um banho demorado. Saiu do banheiro, vestiu uma camiseta e uma calça de agasalho. Abriu a geladeira, pegou um iogurte e sentou-a na varanda. Olhou os prédios da cidade aos seus pés e constatou que uma garoa fina e fria começava a cair. O celular tocou, mas ele não teve vontade de atender.

Olhou o relógio e viu que já eram mais de 10h30 da manhã. Começou a pensar em trivialidades e em convenções que sempre desprezara. Que roupa usaria? Devia fazer a barba? Seria melhor que chegasse bem antes do sepultamento? Não se aprofundou em nenhuma dessas questões e sentiu um cansaço profundo… de tudo e de todos!

Passou um longo tempo observando aquela chuva, como se o mundo tivesse parado de girar. Chegou à conclusão de que não havia motivos para ir ao cemitério.

Ninguém que fizesse parte da vida dele havia morrido.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Shirleyne disse:

    Muito bom. E quantos passaram por essa intimidação emocional e não conseguiram colocar para fora.
    Enfim o mundo esta melhorando.

  2. Professor, realmente o pai não fazia parte da vida do rapaz.! A frase final deixa claro, “ninguém que fizesse parte da vida dele havia morrido”. Pelo que me lembro fui intimidado duas vezes em casa: uma pelo meu avô e a outra pela minha mãe. Eles foram amenos, só que as frases me marcaram muito.
    Espero que tenhamos mudanças nesse mundo, e que elas sejam ponderadas.

  3. Roberto disse:

    Cada crônica você se supera! Muita gente já passou e passará por uma situação similar. Parabéns por mais esse texto, Vitão. Abraços, Bob

  4. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Mais uma vez belissimo texto. E o protagonismo coube ao preconceito. É um mal disseminado ao longo da existência humana infelizmente.
    Parabéns

  5. Clarice keri disse:

    Ótima história, muito bem escrita, como sempre você consegue me emocionar, quanto tempo o pai perdeu de ficar ao lado do filho como em tantas histórias que conhecemos, parabéns e obrigada.

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