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O CASAMENTO

Aquele sábado amanheceu ensolarado e quente. Ótimo para a molecada que já se reunia no campinho pro jogo de sempre, para as mulheres que recolhiam as roupas secas do varal, para os homens que se reuniam para jogar dominó e baralho no bar do seu Euclides e ótimo para a festa de casamento que agitava o bairro fazia bem uns dois meses.

Quem diria! O Albertinho, caçula do seu Olavo, ia dar uma festa para comemorar sua união com o outro moço – o Joel. E isso com a permissão do Seu Olavo e da esposa, Dona Lídia. Era muita coisa para aquele lugar tão conservador, que os mais jovens chamavam de “atrasado” mesmo.

Ninguém sabia exatamente como os pais do moço haviam consentido naquilo – o namoro entre homens, as visitas do outro moço à casa da família do Albertinho, os jantares com pizzas nas noites de sábado, os almoços com a deliciosa macarronada e os bifes à milanesa feitos pela Dona Lídia… quando viram, ninguém mais estranhava aqueles dois juntos o tempo todo.

Bem, “ninguém” era o modo de dizer.

O padre Elias evitava visitar a família quando sabia que o namorado do Albertinho estaria por lá. Ele não saberia lidar com aqueles olhares apaixonados entre os rapazes. “Fim do mundo! Valha-me, Deus!”. Mas procurava perdoar os pecados dos jovens que “não sabiam o que faziam, Pai”. O mesmo pensava a Dona Genebra, confeiteira que havia feito os bolos e doces dos casamentos dos últimos 30 anos dos vizinhos e dos filhos dos vizinhos. Doceira de mão cheia, as encomendas eram todas feitas com ela. De início, Dona Genebra, quando ficou sabendo que o casamento ia sair mesmo, foi definitiva: “Eu não participo disso. Da minha cozinha, não sai doce nenhum para uma festa assim. Onde já se viu? Tanta moça bonita no bairro e o Albertinho vai se juntar com outro rapaz? Coitada da Dona Lídia! Mas o culpado é o Seu Olavo, que devia proibir um negócio desse”.

Sua convicção foi abalada quando soube da quantidade de doces e salgadinhos que teria de fazer, além do tamanho do bolo – e, sobretudo, quanto ganharia com a festa. Foi assim que reviu seus princípios e concordou com a encomenda.

Seu Euclides, de início, também não gostava da ideia de uma festa daquela. Disse para quem quisesse ouvir que, no dia, fecharia o bar para não ver uma coisa tão esquisita. Dois homens se casando! O que era aquilo? Até que soube da quantidade de cerveja e outras bebidas que os noivos queriam… fez os cálculos, pensou, pensou e não só vendeu tudo como foi à festa na casa do vizinho de tantos anos. Seu presente e o da esposa foi um engradado de cerveja no meio de tantos outros vendidos.

A vizinha de parede de Dona Lídia – Dona Rute – pensou em passear na casa de uma irmã no interior no fim de semana da tal festa. Assim, ela, o marido e o único filho solteiro não teriam que estar presentes. Tudo mudou, porém, quando o Albertinho chamou as netas gêmeas da Dona Rute para serem damas de honra. Dona Rute também pensou, pensou e concluiu: elas iam ficar lindas nos vestidinhos que só a Dona Sara sabia fazer. Aceitou ir à festa.

Seu Júlio era alfaiate fazia mais de 40 anos. Quando procurado, ouviu com a calma de sempre o que aqueles moços bonitos queriam. Tirou-lhes as medidas, deu as instruções do pano que precisaria, fez o orçamento e, uma vez tudo arranjado, pôs-se a trabalhar nos ternos. De quebra, ainda foi procurado pelos padrinhos e, pela primeira vez, viu sua alfaiataria cheia de rapazes musculosos e “sem barriga”. Foi a esposa, Dona Cida, que tentou fazê-lo mudar de ideia quanto ao serviço, mas sem sucesso. (Mais tarde, na festa, era uma das que mais comiam doces…)

As irmãs solteironas, Vilma e Vânia, românticas que eram, foram às lágrimas quando receberam o convite para o casamento. Não repararam, na hora, que não era a filha da Dona Lídia, a Glorinha, que ia se casar com o rapaz de outra cidade – era o filho. Saia justa entre as vizinhas, constrangimento na hora do chá com rosquinhas feitas pelas irmãs, elas resolveram “deixar pra lá” e prestigiar os vizinhos de tantos anos. “Dona Lídia e Seu Olavo mereciam respeito”. Acharam que deveriam ir à festa. Foram! Tiraram seus melhores vestidos, sapatos e bolsas do guarda-roupa e foram!

        Quem também relutou em ir ao casório foi o Seu Gabriel, eletricista e encanador para todas as horas do dia e da noite. Quando chegou em casa e viu o convite em cima da mesa, perguntou à esposa o que era aquilo. Martinha, a filha que tinha esse nome porque a mãe era fã da Jovem Guarda, pulou na frente e explicou: “O Albertinho vai se casar com o namorado. Não quero nem saber, hein, pai: nós vamos na festa e eu vou mandar fazer um vestido bem bonito pra mim. A mamãe também vai fazer um vestido novo. Não quero nem saber, hein…”. E os três foram à casa do Seu Olavo, naquela festa que, pro Seu Gabriel, era muito esquisita. Era muito mais fácil consertar fiação solta.

Da parte do Albertinho, a família inteira mais próxima compareceu. Além dos pais e da irmã que viviam com ele, os outros quatro irmãos com suas esposas e filhos; uns cinco tios e tias, uns 20 primos e primas e a única avó viva, Dona Gilda, que já contava 92 anos e não reconhecia mais as pessoas direito. Às vezes, esquecia o próprio nome, coitada. 

Do lado do outro noivo, o Joel, vieram os pais e os irmãos lá dos lados de Pirassununga. E o pai dele, Seu Norberto, se apressou em explicar que a grafia correta era “Piraçununga”, como as palavras indígenas deveriam ser grafadas, regra que ninguém obedecia. Um desastre!”.

As famílias se conheceram no dia da cerimônia, embora o Albertinho e o Joel já namorassem fazia três anos. Tudo bem, tudo civilizado. Os pais dos noivos, Seu Olavo e Seu Norberto, não chegaram a verbalizar nada, mas numa troca de olhares diziam um para o outro: “Este mundo está mudado, muito mudado!”.

Dona Lídia e Dona Márcia (mãe do Joel) entenderam-se rapidamente e provaram que aquele negócio de rivalidade entre as sogras era coisa de cinema americano… novela da Globo também.

Fiquei sabendo que a festa foi bonita e animada. Segundo alguns vizinhos, foi inesquecível. Os noivos estavam bonitos com seus ternos e, como fizesse um calor horrível naquele mês de fevereiro, a ideia da festa no quintal enorme da casa do Seu Olavo tinha sido ótima!

Entre os maledicentes e invejosos (sempre os há!), Dona Jandira era a mais conhecida. Moradora do outro lado da rua, em frente da casa da família do Albertinho, a mulher alimentava uma velha briga com os vizinhos de muitos anos. Não foi convidada, é claro, e mordeu-se de inveja. Falou mal do relacionamento dos rapazes para quem a quisesse ouvir. Naquela noite, ficou atrás da cortina da sala, luz apagada, olhando toda a alegria da festa e morrendo de vontade de estar no meio da gente toda. Invejoso sempre passa vontade.   

Não houve cerimônia religiosa, que isso já seria demais para aquelas pessoas. Houve, sim, muita música e muita dança. O Sérgio, DJ do salão do clube local, foi encarregado de animar a festa. Começou com muita música Disco – ABBA, Boney M, Michael Jackson, KC & The Sunshine Band, Santa Esmeralda e por aí foi. Quando ele tocou Village People, houve aplausos e risos por parte dos amigos e padrinhos dos noivos, mas nem todo o mundo entendeu o porquê. Terminado o set, um pouco de samba e o inevitável sertanejo. Quando o Sérgio começou a tocar MPB, o Albertinho e o Joel se olharam e souberam que aquela era “a hora deles”. Assim que a Marisa Monte começou com “Bem que se quis”, os dois se beijaram e começaram a dançar no meio de todos.

Algumas mulheres quiseram chorar. Os homens mais velhos limparam a garganta e sentiram um certo desconforto, mas foram suficientemente educados para darem um abraço no Seu Olavo. Este, meio comovido, meio constrangido, recebia os abraços e chorava também. Dona Lídia deu um abraço na Dona Márcia e sentiram que eram as mulheres mais felizes do mundo. Não haveria netos, mas tudo bem…

A felicidade e a alegria eram contagiantes. Me contaram que por muito tempo se falou daquele casamento. Os salgados, os doces e o bolo da Dona Genebra foram um sucesso total e ela, toda cheia, cochichou no ouvido do marido que estava pensando em abrir uma confeitaria na cidade. Ia ficar rica!

O Padre Elias não resistiu e acabou aparecendo. Foi mais uma alegria muito grande para Dona Lídia, que estava triste com a ausência do sacerdote.

Todos cantavam, todos dançavam. Dançavam, comiam e bebiam. A alegria era geral, embora não fosse maior do que a dos noivos.

Magoada, mesmo, só a Glorinha, que foi chorar no banheiro, porque era apaixonada pelo cunhado e não entendia como o Joel preferia ficar com o Albertinho e não com ela.

Num canto do jardim, podia-se ver o tio Plínio, o solteirão de 70 anos, que cuidava da mãe, Dona Gilda, de 92; um homem simples, para o qual a família nunca prestara muita atenção. Enquanto olhava os noivos se abraçando, lembrou de um rapaz que conhecera havia muitos anos. E ficou triste por toda a vida que ele podia ter tido e que não teve.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. RICARDO CANO disse:

    Esse texto me fez pensar na música A Banda do Chico Buarque. Uma sensação de euforia em cadeia da qual ninguém consegue escapar. Em alguns momentos, parece um sonho bom que vai acabar. Muito lindo o texto com um final melancólico, pois a banda não tocava pra ele.

    • Marco Antônio Gonçalves disse:

      Muito boa a crônica ,uma crítica leve sobre mossa sociedade hipócrita,mas que com uma pequena questão financeira se ajeita com a modernidade.O amor é lindo não importa de que forma se manifeste.Parabens!!!!!

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica. Bem humorada. Inteligente e mostra que o preconceito resiste até o momento que levar alguma vantagem é mais interessante e lucrativo. O resto é festa. Oh Lord….

  3. Professor, muitas coisas passaram pela minha cabeça! A profissão do meu pai sempre foi a de Alfaiate, anos depois Enfermeiro, então, viajei no tempo.
    A cidade de “Piraçununga” é próxima a cidade que resido, e como não lembrar do aguardante 51? As músicas “disseram” tudo e mais alguma coisa. Ui! A vizinhança, bom, a vizinhança sabemos muito bem como é, convivemos com isso aqui em Neverland.

    Adorei a Crônica.

  4. Clarice keri disse:

    Ótima crônica, adoro quando você descreve detalhes dos pensamentos de cada um, e é bem do ser humano, ignorar o que realmente importa, a união de duas pessoas q se amam, obrigada.

  5. Roberto disse:

    Oi, Vitão! Um show de crônica. Parabéns por mais essa. Abraço, Bob

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