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EARTHA KITT

Já escrevi, neste mesmo blog, uma crônica sobre a série Batman, aquela que divertiu crianças, jovens e adultos nos anos 60 e que era uma paródia dos filmes de super-heróis. Muitos vão se lembrar, com bom humor, do icônico Batmóvel, da linda Mansão Wayne, da superequipada Batcaverna e da convivência suspeita de um milionário solteirão com um rapaz mais jovem, que ele considerava um “pupilo”. Será que a Tia Harriet e a Batgirl foram introduzidas na série para dar uma “aliviada” na reputação do Batman? A gente sabe que sim.

        Bem, entre os “vilões especialmente convidados”, esteve a cantora e atriz Eartha Kitt, uma das três que interpretaram a Mulher Gato no seriado – as outras foram Julie Newmar e Lee Meriwether. Desnecessário dizer, a Mulher Gato sempre foi um ícone gay: elegante, bonita, charmosa, sensual e inteligente. (Gays podem não transar com mulheres, mas sabem reconhecer quando veem uma mulher bonita e sedutora.) Em vários episódios, ela tenta seduzir o Homem Morcego, que, adivinhem!, recusa-se a acompanhá-la por causa do Robin. Sem comentários…

        Eartha Kitt aparece na terceira e última temporada da série. A novidade, claro, ficou por conta de que era negra – a única entre as vilãs e vilões do seriado – o que não era pouca coisa em se tratando dos americanos e dos anos 60. Se aquela foi a década dos hippies, dos Beatles e da pílula anticoncepcional, também foram anos de muita violência contra negros (Martin Luther King, por exemplo) e homossexuais (lembrem-se de Stonewall!). E a Mulher Gato de Miss Kitt não ficou devendo nada às outras anteriores.

        A mãe de Eartha era filha de negros e de pai Cherokee (uma tribo específica de índios norte-americanos). O pai da atriz, que ela nunca conheceu, era branco. Nasceu em 17 de janeiro de 1927, na Carolina do Sul, e, a partir dos oito anos, foi criada por parentes no Harlem, em Nova York, crescendo numa vizinhança bastante diversificada etnicamente falando.  Segundo consta, seu padrasto não gostava dela por causa da cor. Também era maltratada pela tia com quem foi morar e, assim, Eartha ficava muito na rua. Com 16 anos, já revelou todo o seu pendor para as artes: juntou-se à Companhia de Dança de Katherine Dunham e viajou pelos Estados Unidos, México, América do Sul e Europa. Quando a companhia voltou aos EUA, Eartha ficou em Paris, onde ganhou notoriedade como uma cantora de cabarés. Sua voz sensual e seu bonito corpo contribuíam muito para seu sucesso, principalmente entre os homossexuais.

        Foi descoberta por Orson Welles, que a escalou para interpretar Helena de Troia em sua versão de “Doutor Faustus”. De acordo com Welles, Eartha era “a mulher mais excitante do mundo”.

        Tornou-se uma estrela quando atuou na Broadway e gravou músicas de sucesso como “C´est Si Bon”, “Santa Baby” e “I want to be evil”, nos anos 50. Fez vários outros filmes com sua presença marcante e sua voz sensual.

        A atriz e cantora quebrou várias barreiras impostas à sua cor, e Batman foi apenas uma delas. Quando se tratava de política, Eartha nunca escondia o que pensava – e isso trouxe complicações para sua carreira. Num almoço na Casa Branca, em 1968, chocou a todos, principalmente a primeira dama Lady Bird Johnson (mulher do presidente Lyndon Johnson), quando expôs o que pensava sobre a Guerra do Vietnã, na qual jovens estavam sendo enviados diretamente para a morte. Eartha desceu a lenha naquilo tudo. “Vocês mandam o melhor deste país para ser mutilado. Eles se rebelam nas ruas e não querem ir para a escola porque serão arrancados de suas mães para serem baleados no Vietnã. Não é de se admirar que se rebelem”.

        Por conta disso, sua carreira entrou em declínio: a indústria do entretenimento submeteu-a a um processo de boicote e marginalização. Ela não conseguia emprego simplesmente por causa de sua posição quanto àquela guerra insana que tanta dor de cabeça e vergonha estava proporcionando e proporcionaria aos Estados Unidos. Foi sobreviver na Europa. Durante o período em que ficou afastada dos holofotes em seu país natal, Eartha afirmava que “graças aos gays, pude me manter empregada nos palcos, o que garantiu meu sustento e, mais tarde, minha ressurreição”.

        Matérias de jornais da época informam que sua carreira voltou a decolar quando, nos anos 70, veio a público que ela de fato havia sido investigada (e obviamente boicotada) pelo Serviço Secreto Americano.  

        Voltou a fazer sucesso nos Estados Unidos somente dez anos depois, com a peça “Timbuktu” (1978), uma versão de “Kismet”, que contava com um elenco totalmente de atores negros. Jimmy Carter, consertando o que seu coleguinha havia feito anos antes, convidou, e Eartha voltou à Casa Branca, agora dando a volta por cima.

        No fim de sua vida, foi nomeada ao Tony pelo trabalho na peça “The wild party”. A revista Queerty informa que, durante aquele período, Eartha foi uma das grandes defensoras do casamento gay, além de se apresentar em vários eventos para arrecadação de fundos destinados à pesquisa sobre o HIV e a Aids.

        Lembro que, em meados dos anos 90, um remix de uma de suas músicas fez bastante sucesso nas pistas de dança – “Where is my man”.

        Sobre os homossexuais, dizia: “Sei bem o que é ser rejeitada e oprimida, embora eu seja hetero. Entendo muito bem essa condição”.

        Foi casada, entre 1960 e 1965, com John William McDonald, empresário do ramo imobiliário, com quem teve uma filha, Kitt McDonald. 

        Eartha faleceu em 25 de dezembro de 2008, devido a um câncer de cólon, em Weston, no estado de Connecticut.

 

A atriz em Batman:

https://www.youtube.com/watch?v=GojaLNUGmuY&t=65s

Pra quem quiser (re)ver as três atrizes juntas:

https://www.youtube.com/watch?v=QqwJDFA0Yfw

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Ricardo Cano disse:

    Adoro essas biografias inusitadas contadas por um amantes das series clássicas 🙂

  2. Professor, conheci a cantora através do single “Where is my man”, naquela época não sabia que Eartha havia interpretado a mulher gato, descobri anos mais tarde. O single “Where is my man” inclusive com os remixes, comprei nos anos 90, uma febre. Que delícia de Crônica, uma viagem aos anos 60 e 90.
    Where is my man? rs

  3. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica. Interessante e instrutiva.
    Parece que a ignorância e o preconceito são indissociáveis.
    Parabéns

  4. Roberto disse:

    Oi, Vitão! Simplesmente fantástica. Parabéns por mais essa crônica. Abraços, Bob

  5. Clarice keri disse:

    Que crônica maravilhosa, uma delícia ler sobre pessoas que deixaram marcas lindas pelo mundo, obrigada.

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