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MÚSICAS

Para se avaliar uma obra, é fundamental e básico que se respeitem a época e o contexto em que ela foi produzida. Sem isso em mente, tudo pode ser deduzido e interpretado a nosso bel prazer.

Bem, a revista eletrônica Queerty, editada em San Francisco, na California, publicou uma matéria bem humorada sobre uma música da cantora Brenda Lee – os mais velhos vão se lembrar dela – que fez muito sucesso nos anos de 1960. Sob a manchete “Esta canção country de 1960 é uma ode acidental e hilária aos homens que amam cowboys”, eles explicam: “Às vezes, uma canção é secretamente gay porque o cantor está no armário; às vezes, é por causa do produtor ou talvez por causa do compositor, se eles não são os intérpretes. Às vezes, a música é simplesmente adotada pela comunidade LGBTQ+, por alguma razão ou outra. E então, a gente se depara com a música da Brenda Lee, ‘My baby likes the western guys’ (“Meu amor gosta dos caras do faroeste”)”.

A revista informa que a canção foi gravada para o segundo disco de Brenda, o qual finalmente lhe trouxe sucesso comercial, mas não graças a essa música. O disco alçou três músicas ao Top 10 das “100 Mais”, incluindo o primeiro número 1 da cantora, “I´m sorry”. (Lembro bem dessa – minha mãe adorava!)

A tal música fala de um homem pelo qual a cantora (o eu lírico) está apaixonada, mas que está obcecado por “caras do faroeste”. São atores que se destacam nos filmes de bangue-bangue do cinema e da TV da época. Na letra, ela faz referência à gente como Wyatt Earp e “Mr. Dillon”, das séries de TV “Gunsmoke” e “Cheyenne”, populares nos anos de 1950 e 1960.

O tal homem recusa os assédios da cantora, cancelando encontros e recusando-se a vê-la, enquanto, aparentemente, está interessado somente nos “caras do faroeste”.  A certa altura, ela canta com tristeza: “Oh my baby came to my house last night oh yeah / I thought maybe he would hold me tight oh yeah / But my baby had to watch Cheyenne / said it left his head in a spin.” Algo como: “Meu amor veio à minha casa ontem à noite / Oh, sim! / Eu pensei que talvez ele fosse me abraçar forte / Oh, sim! / Mas meu amor tinha que assistir a Cheyenne / Disse isso e girou a cabeça (pra TV)”.

A revista pergunta: “Ela é uma mulher bonita, e o cara não está interessado nela. Como assim? Talvez os gays da época tenham percebido alguma coisa… se essa música tivesse sido lançada hoje, ela seria interpretada (pelo público) de maneira totalmente diferente”. Eu também acho.

Bom, depois que li essa matéria, lembrei de uma outra música cuja letra também me pôs pra pensar. Em seu disco de 1976, a inglesa Tina Charles – um dos símbolos da Era Disco – canta um de seus maiores sucessos: “I love to love”.

Claro que, na época, eu ouvia a música no rádio e, com 12 anos de idade, não me ligava em nada disso. Primeiro, porque eu não sabia quase nada de inglês; depois, porque éramos ingênuos mesmo. Lembro-me de quando ela veio ao Brasil e fez alguns shows por aqui. A TV Tupi, se não me engano, fez um especial com ela. A mulher, de voz potente, cantou sucessos como “You set my heart on fire”, “Dance little lady dance” e, claro, “I love to love”.

Só mais tarde, já adolescente, estudante de inglês e muito ligado à Disco (por motivos óbvios!), é que comecei a pensar sobre a letra. Vejamos: nos versos, a cantora diz que “I love to love / but my baby just loves to dance /He wants to dance, he loves to dance, he’s got to dance / Oh, I love to love
But my baby just loves to dance / Oh, I love to love / But he won’t give our love a chance / No, no, no…” – “Eu amo (adoro) amar (namorar/transar) / mas meu amor só gosta de dançar / Ele quer dançar, ele adora dançar, ele tem que dançar /Oh, eu amo amar /mas meu amor só gosta de dançar / Oh, eu adoro amar / mas ele não dará uma chance ao nosso amor / Não, não, não…”. E por aí vai.

Como diz o ditado popular, “a beleza está nos olhos de quem vê”, e eu tinha um professor no colégio que dizia que a maldade está na cabeça das pessoas. Pode ser! Mas um cara que não quer namorar (amar, transar – dê a tradução que você quiser, leitor) e só quer dançar faz com que a gente levante a sobrancelha e fique em alerta.

Claro que o contexto da Disco promovia o gosto pela dança, pela noite, pelas discotecas, e ficar em casa era programa de gente careta. O negócio era dançar mesmo. Dançar a noite inteira, como diz a música de Tina Charles, “dance until we drop”, isto é, “dançar até cair”.

Se hoje, contudo, eu tivesse uma amiga cujo namorado se comportasse assim, eu diria a ela, já rindo: “Huuuum…. não sei, não. Ele só gosta de dançar? Vocês não transam? Ele gosta de ABBA, Madonna, Barbra Streisand, Cher, Bette Midler, Christina Aguilera? Gosta? Então vocês serão só bons amigos…”.

Fui maldoso? Só um pouquinho…

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. Roberto disse:

    Sempre aprecio as suas crônicas, Vitão! Parabéns por mais essa! Abraços, Bob

  2. Ricardo Cano disse:

    Até tu, Tina!?
    😄😄😄

  3. Ui! Sei…eu acrescentaria Gloria “Gay” nor, também! Ri bastante.

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Interessante e divertida crônica.
      Cada um vê e interpreta o que vê ao seu modo.
      Outros tempos!!!!!
      Parabéns

  4. Clarice keri disse:

    Muito bom, você disse tudo, hoje em dia tudo é mais aberto e malicioso, mas ainda bem, obrigada.

    • Baltasar Pereira disse:

      Delicioso passeio pelas letras das músicas aqui descritas entre anos 60 e 70 e a referência secreta ou talvez nem tanto que davam a perceber sobre a Sexualidade.
      👏👏👏

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