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O PAI

O garoto tem 14 anos, está no quarto, mexendo no celular, sozinho, e o pai bota a cara na porta:

– Ô, rapaz! Vai ficar neste quarto o dia inteiro? Por que não vai pra rua, jogar bola com os outros meninos? Sol quente, dia bonito… amanhã, vou ao estádio com seu tio. Quer ir com a gente? Vou comprar os ingressos…

Diante da recusa e da falta de palavras do rapaz, o pai fica irritado, sai e fecha a porta. Menino estranho o seu filho. Sempre isolado. Sempre mexendo no bendito celular. Dia e noite.

Três dias depois, o homem chega do trabalho. Estaciona o carro em frente da casa, no quintal espaçoso. Quando sai do carro, vê o filho na roda de mulheres, braço dado com a mãe. Fica mal humorado, irrita-se, mas não sabe a razão de sua perturbação. Depois de cumprimentar as vizinhas rapidamente, entra e vai diretamente ao banheiro. Precisa de um banho. É isso. Muito trabalho. Naquela noite, jantou irritado.

Não se passam muitos dias e o filho está de papo com a filha do vizinho no portão. O homem sente um certo orgulho – certamente o garoto está paquerando. Precoce o rapaz! Gostou de ver. Passou rapidamente pelos dois, cumprimentou-os e saiu sorrindo consigo mesmo. Comenta com a mulher que o filho está lá de trelelê com a filha do vizinho. Bonitinha ela! A mulher não lhe dá muita atenção, ocupada que está com a janta.

Na hora da família reunida na sala, em frente à TV, o pai pergunta, com malícia, se o filho está interessado na moça. O rapaz olha pro pai e pergunta: “Que moça?”. “Aquela com quem você estava conversando quando eu cheguei, oras! Que moça que pode ser, meu Deus?”. O rapaz conta: “Não: ela queria saber de um amigo nosso lá da escola. Tá apaixonada por ele. Só isso!”. O pai, meio desconsolado, volta os olhos pra TV.

        Quando acorda na manhã de domingo, está sozinho em casa. Levanta-se, vai ao banheiro, alivia a bexiga, passa uma água no rosto e escova os dentes. A mulher já deixou tudo pronto para o café do marido. Dali a meia hora, ela chega com o filho: foram os dois à feira de artesanato da igreja. Ela comprou umas toalhinhas de mesa, sugestão do rapaz, que tem um gosto muito apurado para essas coisas de casa.

Na noite de sábado, depois do jornal, o pai vai para o bar, jogar um baralhinho com os amigos da vizinhança, velhos conhecidos, desde a infância. A mulher fica vendo a novela. O filho, também. O homem, de novo, sai meio irritado, achando que o rapaz está jogando a juventude fora. “No meu tempo, na idade dele, eu já tinha pego muita moça dessa rua. Ah, se fosse eu…”.

Num certo dia, entra no quarto do filho sem bater. Não foi por maldade, nem se lembrou de fazer isso. O outro estava ao computador, pra variar, e o pai teve a nítida impressão de que o filho mudara a tela rapidamente. Bem, devia estar vendo alguma mulher pelada e ficou com vergonha. Foi isso. Não comentou nada com a mulher – um segredo entre homens. Sentiu-se meio cúmplice do filho e gostou da sensação.

No dia em que, de dentro do carro, viu o rapaz na companhia de outros dois, numa rua da cidade, ficou curioso. Quem eram aqueles meninos que ele, o pai, não conhecia? Achou bom que o filho tivesse amigos. Sempre sozinho, muito agarrado à mãe. Estava na hora de se libertar um pouco. Mas, de alguma forma, não simpatizou com os meninos. Achou-os um pouco enfeitados demais pro seu gosto. Molecada estranha essa!

Aconteceu que, no dia em que o pai estava almoçando em casa, veio um telefonema da escola. Que o responsável – o pai ou a mãe – fosse ao colégio. “Não, podem ficar tranquilos. Ele está bem… mas o diretor quer falar com um dos senhores. E assunto sério. Podem vir agora?”. Podiam. Mais do que depressa, entraram no carro do homem e correram para a escola. O que o rapaz poderia ter feito para que os pais fossem chamados com aquela urgência? Ele sempre fora tão tranquilo, tão bom aluno, sem notas vermelhas, sem repetir um ano sequer… a mãe já com vontade de chorar, nervosa; o pai mal enxergava os faróis vermelhos. Teria ofendido algum professor? Teria brigado? Estaria machucado?

Assim que chegaram à escola, foram encaminhados à diretoria. Lá, o diretor os esperava, sério, atrás da escrivaninha. Dois rapazes sentados à sua frente, cabeças baixas, sem coragem de encarar os pais. Os pais do outro já estavam lá. Foi uma das mães que rompeu o silencio e perguntou do que se tratava.

– Fico constrangido de contar-lhes, senhora. Muito constrangido. Nem sei como começar, mas a escola não pode tolerar certas condutas dos alunos. Isto aqui é um estabelecimento de ensino. A ética e a moral devem prevalecer. O que os alunos fazem do portão pra fora é da conta deles… ou dos pais, no caso, por serem ainda menores de idade.

Fez uma pausa. Tirou um pigarro da garganta e viu que os adultos ali não estavam entendendo o que se passava.

– Não tenho nada a ver com as preferências sexuais dos alunos e cada um leva a vida que quiser, de acordo com a educação que recebeu e de acordo com a família a que pertence. Serei obrigado a expulsar os filhos de vocês por atos imorais no banheiro masculino da escola. Nessa manhã, o inspetor flagrou esses dois jovens – e apontou para os dois rapazes que ali estavam – com práticas nada admissíveis num colégio. Fico constrangido de lhes dizer isso, repito. Não me agrada fazer o que farei, mas a situação é incontornável. Darei andamento ao processo de exclusão dos jovens. Eles poderão se defender, é claro, mas vejo poucas possibilidades de que a situação se reverta em benefício deles. O inspetor tem testemunhas; outros alunos viram o ocorrido também.

E continuou falando. Os pais, quietos, envergonhados com tudo aquilo. Eram pessoas simples, humildes, moradores do bairro havia tantos anos. Eles mesmos tinham frequentado aquele colégio público em sua juventude.

Terminada a reunião, cada casal se retirou, acompanhando seu filho. Não tiveram coragem de se despedir uns dos outros. O pai, nosso conhecido nesta história, não se dirigiu ao filho em momento algum. Sentiu apenas que alguma coisa tinha morrido dentro dele. Era isso: uma morte dolorida, amarga, que queimava o peito e fazia com que nada mais tivesse muito sentido pra ele. A vergonha, o constrangimento, a humilhação, as palavras do diretor que não saíam de sua cabeça. A dor no estômago, o amargo na boca, a cabeça sentindo as marteladas. Não quis olhar pelo retrovisor o filho no banco de trás.

Quando chegaram à casa, em silêncio, o homem esperou que a esposa e o filho saíssem do carro. Ele continuou atrás do volante. Assim que se viu sozinho, deu marcha a ré e saiu, sem destino certo, apenas para não ficar sob o mesmo teto que o moço.

Aquela foi uma conversa que jamais tiveram – nem naquele dia, nem em qualquer outro. Pai e filho nunca mais se olharam nos olhos, nunca mais trocaram uma palavra de carinho que fosse. Dois estranhos na mesma casa. Quando o filho estava, o homem procurava um jeito de se ausentar. E assim, os anos foram se passando.

A mulher – dizem que por desgosto – morreu. O homem, passados uns três anos, casou-se de novo. O rapaz, agora um homem de 20 anos, saiu de casa. Pouco ou quase nunca se veem.

Já adulto e agora um ator de teatro, o moço vai participar da montagem de “Man and Superman”, uma peça de George Bernard Shaw.

Só com o texto do dramaturgo irlandês é que o jovem compreende o comportamento do pai. Seu personagem na peça, a certa altura, diz: “Toma cuidado com a pessoa que não te retribui o golpe: ela nem te perdoa, nem permite que tu perdoes a ti mesmo”.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Me vi naquela escola, viajei – grafaria muita coisa! Nunca me esqueço quando minha genitora (in memoriam) me tirou da cama e me perguntou se eu estava aprontando! O “aprontando” dela era o “viadando”. Ela me perguntou que história é essa de você estar viadando? – saí pela tangente. Anos mais tarde todos já sabiam. Muitos golpes recebi e muitos devolvi.

    Belíssima Crônica, professor

  2. Roberto disse:

    Parabéns, meu amigo por mais essa fantástica e sensível crônica! Abraço, Bob

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Bela crônica. Real, viva e de certa forma comum.
      As reações humanas são imprevisíveis porque as pessoas são diferentes umas das outras. Mas em certos casos há um denominador comum que envolve ignorância e preconceito. Parece um estigma.
      Parabéns

  3. Clarice keri disse:

    Mais uma história maravilhosa e triste, esse pai perdeu a chance de estar com o filho, pena , sabemos que há outros como ele, adorei,obrigada.

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