A REPÚBLICA
1 de fevereiro, 2024
FIM I
8 de março, 2024
Mostrar tudo

TAXISTA

Saio da boate na madrugada. A garoa fria de São Paulo deixa as calçadas molhadas. Corro pra dentro de um táxi, estacionado, à espera de um passageiro. Surpreendo-me ao ver, àquela hora, que é uma motorista. Depois de eu lhe dizer meu destino, ela começa:

– O senhor vem sempre a esta boate? Frequenta esse lugar faz mito tempo? Não viu aí um rapaz de uns 18 anos, alto, bonito, de barba cheia, cabelo bem aparado? Não reparou?

Antes que eu lhe responda que sim, que vi dezenas de rapazes com a mesma descrição, ela continua em sua simplicidade:

– Sabe o que é, moço? Procuro meu filho faz muito tempo. Não entro nesses lugares poque tenho vergonha e também porque não tenho dinheiro sobrando pra isso, não. Meu filho desapareceu faz seis meses e não consigo achar o moço. Sei que ele está vivo, mandou várias mensagens para a irmã. Sempre escreve pra ela. Fugiu de casa sem dar explicações. Foi embora, assim, sem dar endereço para mim e pro pai dele. E me deixou de peito apertado, coração amassado. Eu e o meu marido nunca brigamos com ele, nunca impedimos ele de fazer nada. Ele é como o senhor, se é que o senhor me entende. Não gosta de mulher, não. Mas tudo bem. A gente nunca brigou com ele por causa disso, nem obrigou ele a fazer nada. Sempre aceitamos nosso filho como ele era… ou é. Prefiro falar assim, sabe? Falar que “era” fica parecendo que ele já morreu. Deus me livre! Eu não ia aguentar. Fico sempre parada nas portas das boates que é pra ver se ele sai de alguma delas e a gente se encontra. Não aguento mais isso de não saber nada dele depois de tanto tempo. Queria que alguém me explicasse por que ele foi embora sem falar nada, sem se despedir da família. O senhor veja: que mal fiz eu pra merecer uma coisa assim? É uma angústia, moço! É uma tristeza que nem sei contar pro senhor! Trabalho com este táxi durante o dia, mas, nas noites de 6ª até segunda, rodo à noite, sempre nas portas de boate, que é pra ver se encontro meu menino. Ele gosta muito de dançar. Ele tem 18 anos, como já falei pro senhor. Quando escreve pelo Whatsapp pra irmã, diz sempre que está bem, mas não fala mais nada. Já faz seis meses, moço. Fui à polícia na primeira semana. Eles não se interessaram muito pelo caso. Dá pra rastrear celular, moço? Não entendo nada disso. Quando o Jefferson – esse é o nome dele – escreveu pela primeira vez, arranquei o celular da mão da minha filha e mandei uma mensagem de voz, desesperada, perguntando o que tinha acontecido pra ele sumir daquele jeito. E nada, moço. Ele nunca me respondeu! Escreve só pra minha menina. Uma vez, disse pra minha filha que detestava ser pobre e morar onde moramos. Meu marido está entre a tristeza e a raiva. Já peguei ele chorando escondido, já chorei junto com ele. A gente já fez até promessa pro nosso menino voltar pra casa. Dá um vazio, moço! Uma vontade de morrer cada vez que vejo a cama dele sem ninguém, com a mesma colcha de todos os dias, o mesmo travesseiro sem o sinal de que dormiram nele. O guarda-roupa, novinho e quase vazio, que eu comprei com as corridas deste táxi. Ele deixou umas poucas mudas de roupa pra trás. Os amigos da rua dizem que não sabem de nada; na escola, menos ainda. E eu vou dirigindo este táxi e olhando mais as ruas do que os semáforos, quem sabe eu vejo o Jefferson andando por esta cidade imensa, cheia de prédios e de perigos! Para uma mãe, não basta saber que o filho está bem – a gente quer abraçar, beijar, passar a mão no cabelo, ver se está bem vestido, bem calçado, bem alimentado. A gente quer abrigar, a gente quer participar da vida dos filhos, o mínimo que seja, moço. Não digo se intrometer, digo fazer parte, o senhor me entende? E ele deixou a gente assim, olhando pro nada, procurando em tudo e em todos os lugares. Coisa ruim! Acho que nunca conheci meu filho direito. Ontem, eu estava pensando nisso enquanto aguardava em frente dessa boate em que peguei o senhor. Meu marido também é taxista. Ele também fica de olho nas portas das baladas – é assim que chamam hoje em dia, né? Eu ouvia o Jefferson falando assim com os amigos. Noutro dia, pensei ter visto meu filho. Estacionei num lugar proibido, desci correndo do carro, o choro já começando – um choro de alegria, acho. No fim, foi um choro de tristeza mesmo. Não era ele, claro. Deve ter sido ilusão da minha parte. Dia e noite só penso onde estará meu filho! Já chorei muito. Já senti, como falei pro senhor, todo tipo de coisa: saudade, tristeza, raiva, derrota, angústia, depressão, revolta… menos conformismo. Não me conformo de ele ter feito o que fez com a gente!

Chegamos, finalmente, à porta do prédio onde moro. Ela estaciona o carro perto da calçada, sob a garoa que persiste. Pago a corrida e me sinto totalmente impotente diante daquela mulher que me parece tão forte e tão fragilizada ao mesmo tempo. Dou-lhe um olhar de solidariedade e quero que ela perceba todo o respeito que sinto diante de seu sofrimento. Desejo-lhe boa sorte em sua procura.

– Ele vai voltar. A senhora vai ver…

Enquanto abro a porta do meu prédio, penso no Jefferson, que eu não conheço, nem gostaria de conhecer.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Belo texto, tocante e real
    He is leasing home. Oh Lord
    Parabéns

  2. Roberto disse:

    Parabéns pela crônica, Vitão! Realmente os motoristas de táxi nos contam histórias de vários tipos, tristes e alegres. Forte abraço, meu amigo. Bob

  3. Clarice keri disse:

    Parabéns Vítor, descreveu o sofrimento de uma mãe muito bem, deve ser triste não saber de um filho, obrigada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *