Tão perigosa quanto a permissividade completa, é a prática da censura sem critérios. Já escrevi um texto sobre isso e senti vontade de retomar o tema.
Neste mês de março de 2024, causou polêmica a censura imposta ao livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório – escritor, professor e pesquisador radicado em Porto Alegre. A obra, que eu não li, venceu o Prêmio Jabuti de 2021 e, segundo O Estado de S. Paulo, “faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) desde 2022 e aborda temas como o racismo estrutural e violência policial. Será recolhido em escolas públicas de Curitiba e outras cidades”. (As opiniões dos leitores se dividiram, é claro, como não poderia deixar de ser!)
Bem, infelizmente esse não é o primeiro, nem será o último caso de livro censurado. Basta que a gente se lembre do que ocorreu na Bienal do Livro no Rio de Janeiro em 2019, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) teve de derrubar uma liminar do Tribunal de Justiça daquele estado que permitia o recolhimento de livros com temática LGBT+. Na ocasião, o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, determinou o recolhimento de exemplares do romance gráfico “Vingadores, a cruzada das crianças” (Editora Salvat), que continha a imagem de um beijo entre dois rapazes.
Pelos mais variados motivos, livros são censurados no mundo inteiro – temos vários casos nos Estados Unidos (principalmente nos estados da Florida e do Texas). E a questão também não é nova. Na Idade Média, por exemplo, era a Igreja quem determinava o que podia ser lido e o que deveria ir para a fogueira. Hitler e seus seguidores fizeram isso bem perto de nós no tempo e no espaço, na Europa do século 20.
Enquanto escrevo, lembro-me de dois filmes que tratam do assunto, cada um à sua maneira, e que deveriam ser vistos pelo grande público.
O primeiro deles é “Storm Center” (no Brasil, “No Despertar da Tormenta”), do diretor Daniel Taradash, 1956. Já fiz alusão a ele em outro texto neste blog, mas cito de novo. Na trama, a grande Bette Davis interpreta Alicia Hull, uma bibliotecária viúva de uma pequena cidade da Nova Inglaterra. Ela deseja uma ala infantil na biblioteca, e, em troca, o conselho municipal pede-lhe que ela tire da estante um livro comunista. A bibliotecária se recusa e as consequências de seu ato trazem-lhe sérios problemas numa época em que o Comunismo e a proibição de livros eram assuntos bastante espinhosos. A literatura especializada informa que esse foi o primeiro filme anti-macarthismo a ser produzido em Hollywood. E isso não é pouco.
O filme é interessante – poderia ser mais. A interpretação de Bette Davis, pra variar, é esplêndida, mas o filme, repito, poderia ser melhor. De qualquer forma, vale a pena ser visto, pois não perdeu sua atualidade. Está no Youtube.
Outro filme que me veio à mente foi “Fahrenheit 451” (1966), de François Truffaut, baseado no romance de Ray Bradbury. A história se passa numa sociedade distópica (a palavra está na moda, então vou usá-la) na qual as pessoas são proibidas de ler por um governo totalitário. Os livros devem ser queimados a 451 graus Fahrenheit, temperatura na qual o papel pega fogo. Um bombeiro (Oskar Werner), encarregado de queimar os livros, conhece uma professora (Julie Christie) que adora livros. Quando se apaixona por ela, o bombeiro começa a repensar seu comportamento e sua função naquela sociedade.
Diante da proibição governamental, o que as pessoas fazem então? Cada um decora um livro, isto é, cada um “passa a ser uma obra”, passa a ser responsável pela “sobrevivência” de um livro. Uma declaração de amor à literatura.
Sua mensagem é forte e poderosa. No cartaz de divulgação do filme, lia-se: “E se você não tivesse nenhum direito à leitura?”. A pergunta é incômoda e nos traz o desconforto próprio dos absurdos de gente tacanha e radical, seja da direita ou da esquerda, e seus tais cancelamentos.
Leio uma matéria no site Opera Mundi cuja manchete traz: “Racismo e Literatura – Unicamp discute o que fazer com acervo do cancelado Monteiro Lobato”. No artigo, lê-se: “O debate teve um motivo: em 2023, o Centro Cultural Alexandre Eulalio (Cedae) da Universidade Estadual de Campinas realizou pela primeira vez a exposição ‘Retratos Literários’, que apresentava imagens e informações de escritores que fazem parte do acervo da faculdade, como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Monteiro Lobato”.
Olhem que interessante: Oswald de Andrade, que infernizou a vida de Mário de Andrade por causa da homossexualidade do autor de “Macunaíma”, fazendo com que Mário rompesse relações com Oswald, jamais foi cancelado por homofobia. Vai entender!
(Que fique claro: não sou pelo cancelamento de nenhum dos dois – nem de Lobato, nem de Oswald. Apenas aponto a falta de lógica desse moçada que quer consertar o mundo.)
Lembrei agora das escritoras Adelaide Carraro e Cassandra Rios, cujos livros foram muito censurados também. Mas isso é conversa para um próximo texto.
4 Comments
Professor, “E se não não tivéssemos nenhum direito à leitura?” Que tristeza, um horror, não? Lembro-me do caso do então prefeito do Rio de Janeiro. A Crônica nos faz refletir e refletir. Quanto mais leio, mais quero ler, sem a leitura não somos nada.
A censura é um atraso na vida da gente! Mais uma excelente crônica, Vitão! Parabéns e um abraço, Bob
Olá Prof Vitor
Excelente crônica. Sempre aparece um cretino de plantão para proibir, censurar, impedir, etc.
Não há alternativa à leitura !!!!!!!
Parabéns
Ótima crônica, como sempre, mexe com meus neurônios, têm tanta coisa errada e escancarada no mundo, e vêm um bando de desocupados e censuram um livro, inacreditável.Obrigada professor.