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FIM II

Àquela hora da tarde quente de fevereiro, as únicas testemunhas são a garrafa de cerveja importada e os copos de vidro sobre a mesa. O garçom conhecido está lá pra dentro. O bar só se anima depois das 6h da tarde, de modo que os dois estão no espaço externo, sob a copa de uma linda e antiga árvore, sem a bagunça que tomará o lugar a partir da “happy hour”.

O vento fresco sopra de vez em quando, desmanchando o cabelo liso de um, porém sem alterar o cabelo bem curto do outro. Deviam ser o quê? Umas 4h da tarde… hora em que os escritórios ainda fervilham com homens e mulheres ao celular, olhos pregados nas telas dos computadores, o sol queimando as janelas, enquanto os aparelhos de ar condicionado enganam os que não estão aqui fora sob o calor intenso do verão.

O bar fica num bairro boêmio, mas numa rua tranquila. De vez em quando, um carro passa devagar pela rua de paralelepípedos, toda arborizada, fresca, apesar do sol quente. Ele amassa as folhas no chão. Único som que se ouve.

No bar, os dois bebem em silêncio. Aquele silêncio que se faz quando tudo já foi dito. Dito não necessariamente com palavras, com o movimento dos lábios que um dia serviram para os beijos de amor e de desejo. Pode-se dizer muito com gestos, olhares, penteados, roupas, sapatos… pode-se ser agressivo ou encantador, frio ou apaixonado, dependendo do que se veste e até do perfume que se usa. E os dois estão assim, nesse silêncio no qual as palavras já se esgotaram. É  o silencioso e a paz aparente que enchem a tarde.

Não olham um nos olhos do outro. Querem sair dali, escapar àquela situação que, pensavam, jamais chegaria. Quanto tempo juntos? Cinco anos! Dois anos de namoro, três morando no mesmo apartamento. Noites de sexo, abraços, beijos, carícias. Manhãs repletas de alegria – principalmente nos fins de semana, quando se acorda disposto porque não se precisa ir ao trabalho. Um paradoxo. O ciúme de um, as manias do outro; os amigos de um, meio chatos e antipáticos; o chefe do outro, inconveniente e achando que podia tudo porque era chefe. Tudo isso, os dois pensando, frente a frente, copos de cerveja pela metade, a terceira garrafa já vazia. Quantas concessões feitas!

Se o celular de um deles tocasse, seria um bom pretexto para quebrar aquele clima sufocante que se estabelecera. Se um carro batesse numa árvore, seria um motivo ótimo para ambos saírem dali sem o peso enorme de um rompimento. Até uma criança vendendo doce ou flores poderia dar a eles um motivo para sorrir… mas nada! Tinha-se a impressão de que os ponteiros do relógio do mundo inteiro haviam parado. Londres, Nova York, São Paulo, Tóquio, Roma… parecia que os casais do mundo inteiro estavam vivendo aquele mesmo momento, naquela mesma tarde, diante da mesma garrafa de cerveja.

Qual o motivo mesmo da separação? Quais os motivos do rompimento? A lista era longa e, ao mesmo tempo, tão breve. O tempo, esse componente que corrói e desbota tudo, até a paixão que se quer mais resistente, até o tesão que se quer mais duradouro.

E por que não conversavam em casa, ali perto, no mesmo bairro? Por que o bar onde tantas vezes foram felizes e onde tantas vezes trocaram sorrisos? Nenhum saberia responder se lhes fossem feitas essas perguntas. E o desejo de ir embora, e o desejo de sair dali como se a tarde fosse uma prisão, como se houvesse correntes nos tornozelos de ambos e eles estivessem presos às respectivas cadeiras e aos respectivos copos.

Uma brisa sopra e traz um certo alívio. Um alívio passageiro, posto que era um tipo de acontecimento. Alguma coisa havia acontecido – a natureza estava reagindo. Pelo menos, ela. Ficaram assim, ainda, por algum tempo. Vontade de mudar de assunto, falar do dólar, do novo tipo de celular lançado na mesma semana, da nova série do “streaming”, da guerra no Oriente Médio, da ridícula polarização política no Brasil. Vontade de ambos de não estarem ali, vendo a felicidade indo embora com a tarde quente, partindo com a luz do sol, dando boas-vindas aos ainda enamorados. Eles sabem o que é isso. Um dia, foram assim também.

Um deles sente vontade de pegar a mão do outro, mas se contém. E se lhe fosse recusado o carinho? Humilhação. Mais uma. O outro encolhe-se, fica menor que o copo de cerveja.

E assim, enquanto a tarde cai, depois de muito falarem e acertarem a separação definitiva, os dois não conseguem reunir forças para a partida. Que cordão os une – o cordão da cumplicidade, de um amor que resiste ou da covardia diante da solidão?

A tarde cor de violeta talvez saiba a resposta. Mas, educada, se mantém em silêncio. Ninguém lhe perguntou nada.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica
    Um pequeno retrato que mostra que somos humanos, muito humanos: reticentes, inseguros, alegres, tristes, cheios de dúvidas, em momentos no alto de extrema segurança, em outros em vales de desespero. Altos e baixos de uma vida REAL.
    Parabéns

  2. Roberto disse:

    Parabéns por mais essa maravilhosa crônica, Vitão! Um momento de tristeza num relacionamento rompido! Abraço, Bob

  3. A Crônica caiu como uma luva para mim – um deles sou eu!

  4. Clarice keri disse:

    Que crônica linda, mas senti uma insegurança nessa reparação, ainda existe amor? Você me deixou no ar, mas amei, obrigada.

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