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A TROCA

“Um belo dia resolvi mudar

E fazer tudo o que eu queria fazer

Me libertei daquela vida vulgar

Que eu levava estando junto a você”

(“Agora só falta você” – Rita Lee & Luiz Sérgio)

 

Ele já esvaziou a garrafa de whisky. No apartamento enorme, está sentado na poltrona, em frente à TV desligada. Olha para o nada, pensa em tudo e vai até a janela. Observa a rua deserta, a noite caiu, apenas um carro ou outro desliza sob a garoa fina no bairro elegante e predominantemente residencial. Condomínios novos e bem projetados, de classe média alta.

É um homem bonito. Tem seus 40 anos, corpo em forma (resultado do tênis, que ele pratica desde a adolescência). É cuidadoso com a alimentação e não tem vícios – cardiologista, é expert em cuidar dos corações alheios, mas incapaz de cuidar do seu e da esposa. Toma o último gole no copo. Só o gosto do gelo. Tem vontade de imitar as cenas de novelas baratas em que o mocinho, se sentindo injustiçado, atira o copo na parede e se revolta contra o mundo. Vê o ridículo da intenção. Sua vida tornou-se ridícula. Vai ser motivo de piada por muito tempo. O pensamento lhe traz raiva e inquietude. Fica em pé diante da janela. Parece que o tempo parou lá fora.

No quarto, ela continua arrumando suas malas. É uma mulher bonita também, cabelos pretos, olhos azuis. Com seus 38 anos e três filhos, ainda é uma mulher desejável. O garotão do andar de baixo não tira os olhos dela quando a encontra no elevador ou na garagem. É invejada por outras moradoras cujos maridos não lhe poupam olhares ávidos. Ela e ele, o marido, fazem um casal perfeito… se isso existisse!

Ela pega os vestidos caros, as blusas importadas, os sapatos feitos sob medida (para inveja de muitas mulheres), a caixa de joias (algumas dadas por ele, outras compradas com seu próprio dinheiro), e vê que, embora tenha feito três grandes malas, coisas ainda ficaram no armário de parede inteira. Coisas que ela pegará depois; agora, não.

Cansada, muito cansada, ela olha ao redor do quarto enorme e bem decorado. A cama “king” com o edredom de seda branca; travesseiros com penas de ganso; lençóis de linho vermelho. Ela dá uma última olhada em tudo e, aos poucos, vai juntando as malas com rodinhas que facilitarão seu transporte.

Quanto tempo viveu naquele apartamento? Cinco anos? Mais ou menos. Quanto tempo viveu com o homem que está na sala? Oito anos!

A faculdade de arquitetura, o intercâmbio na Europa, a volta para o Brasil. A festa na casa de amigos e aquele médico bonitão que não tirava os olhos dela. Namoro, noivado, casamento. Três filhos!

Tudo maravilhoso. Casamento perfeito, diziam as amigas – num misto de inveja e admiração. O casal que todos queriam imitar e que todos queriam ver separado. A felicidade incomoda. Os infelizes precisam da infelicidade alheia.

As primeiras brigas, o desgaste com a vinda dos filhos, a ausência dele cada vez mais frequente, as aparências mantidas para as famílias e para o círculo de amigos. Uma vida que perdera o colorido inicial. Tudo isso, ela levava bem, até que era fácil. As amantes inconsequentes dele. Um ou outro pecadilho que ela deixava pra lá. Em casa, ele dizendo que ela era o amor de sua vida. A atenção voltada às crianças.

As brigas que se tornaram cada vez mais intensas. Os simpósios e congressos médicos dos quais ele não tinha pressa de voltar. A irritação por qualquer coisa cada vez mais frequente por parte dele. O silêncio que foi crescendo por parte dela. A falta de comunicação entre ambos.

Houve uma vez em que ele levantou a voz mais do que de costume. Noutra, bateu a porta e foi dormir. Na manhã seguinte, saiu sem falar com ela. “Caminho onde ninguém passa, cresce o mato”, sua avó dizia. Uma terceira pessoa apareceu – na vida da esposa. Foi estranho, muito esquisito, ela não estava preparada para aquilo. Aconteceu, todavia. As coisas acontecem. Surpreendentemente, as coisas acontecem. Os olhares na academia, os sorrisos despretensiosos, o flerte e, finalmente, o papo. Depois, a conquista.

Ela constatou o caminho sem volta quando o marido, numa discussão, a agrediu com um tapa no rosto, mão cheia, que lhe doeu mais no coração do que na face. Pelo menos, as crianças não tinham visto. Ficou com medo do que viria a seguir.

Enquanto faz as malas, o celular toca. Ela atende e procura tranquilizar a voz preocupada.

– Não, não, ele não foi violento. Não se preocupe. Está lá na sala, bebendo e se fazendo de vítima. Desço já. Não, não, fique aí. Não precisa subir.

Ela sai do quarto com as malas. Não quer dirigir a palavra ao ainda marido. Os advogados trabalhando para o divórcio iminente, inevitável. As crianças na casa da avó, mãe dela. A sogra, sem saber do que se passava, condenando a nora, lamentando a infelicidade do filho, um homem tão bom!

Quando a vê sair do quarto, triste, porém bonita como sempre, num vestido azul que realçava ainda mais os seus olhos, ele levanta o rosto para a ainda esposa e pergunta, com a voz um tanto pastosa, efeito da garrafa inteira do whisky importado:

– Você vai mesmo embora? Não tem vergonha na cara? Uma mãe de três filhos! Nunca pude imaginar que você… Seu marido sou eu! É o fim do mundo! Nossos filhos vão ficar com vergonha da mãe pra sempre! Eu mesmo estou com vergonha de você! O que vou dizer a amigos, parentes, o pessoal lá do hospital? Meu Deus!

Ela não tenta explicar. Pra quê? Melhor que ele fique com sua vergonha. Isso não diz mais respeito a ela. Com as malas, ela espera o elevador no corredor. Deixa tanta coisa pra trás que não lhe diz mais nada. Tanta coisa!

Enquanto desce para a portaria do prédio, vai pensando em sua vida que foi – não tem tempo agora pra pensar na vida que virá.

Do outro lado da rua, dentro do carro, a outra mulher espera ansiosa.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Você foi certeiro, professor ! A citação da música caiu como uma luva – não esperava que o final fosse tão intenso. Recordei-me de tantos casos parecidos aqui na minha cidade (ri alto). Interessante a frase da sua avó: “Caminho onde ninguém passa, cresce o mato”.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica. A vida é uma sucessão de acasos que se manifestam a todo o instante. Não temos energia suficiente para lutar contra ela.
    Parafraseando Nelson Rodrigues: “A vida como ela é” e ponto final !!!!!
    Parabéns

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