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FAMÍLIA

Quando ele se separou do parceiro com quem viveu durante cinco anos, a mãe chorou porque queria ver os filhos todos felizes e casados, não importando com quem. Ela sempre soube que aquele era “diferente”, mas não gostava menos dele por isso. A notícia pegou-a de surpresa. “Eles eram tão felizes juntos! O que aconteceu? Já não se fazem mais casamentos como antigamente. Eu e seu pai estamos juntos há 55 anos…”. E foi chorar no quarto, antes de ir conversar com o padre Emílio. (Até chegar à igreja, fez com que a rua inteira soubesse da infelicidade do moço.)

Quando soube que o filho estava voltando para casa, o pai não falou nada. Sua primeira reação foi levar o cachorro pra passear. Demorou mais do que o normal para voltar. Rodou bastante pelo bairro residencial onde morava havia mais de 40 anos. Conhecia todo o mundo e conversou com o quitandeiro, com o padeiro, com o sapateiro e com o chaveiro, todos amigos do futebol de décadas passadas no campo de várzea da rua de cima. Quando voltou, amarrou o cachorro como sempre fazia e enfiou a cara no jornal. Quem sabe, agora, o filho tomava jeito e lhe dava um neto como seus irmãos! Sempre achou aquilo uma pouca vergonha… nunca falou nada para não arranjar briga com a esposa.

Quando recebeu a notícia do término, a irmã caçula trancou-se no quarto, correu pro celular e ficou uma hora conversando com a amiga pra contar da separação do irmão gay. Ele que não quisesse ficar com o quarto dela! Foi pra Portugal, perdeu o lugar. O cunhado até que era bonito, mas muito afetado. Não podia dar certo mesmo. Até que ficaram juntos muito tempo! O irmão era um cabeçudo. Na certa, era o culpado da separação. Eu, hein. Gay é tudo promíscuo, galinha. Querem é farra, minha filha. Não sossegam. Vai ficar velho e sozinho, tenho certeza!

A prima mais chegada, que era apaixonada por ele desde a infância, sentiu um certo ar de esperança no ar. Quem sabe agora, pensou. Quem sabe ele acorda pra vida e vê que gosta mesmo é de mulher! Quem sabe a gente faz a vontade de nossa finada avó e fica junto! Foi tomar um banho, perfumou-se, botou um vestido provocante e foi visitar a tia, como quem não queria nada. Não custava arriscar, né?

O irmão mais velho, homofóbico, nunca havia considerado aquilo um casamento. “Casamento é entre homem e mulher, como sempre foi. Esse negócio de barbudo com barbudo… tô fora. Não sei a quem meu irmão puxou. Não tem isso na nossa família. Vai ver, é coisa passageira e ele caiu na real. Vai ver foi curiosidade, só. Quem sabe arranja uma mulher e para de envergonhar a família! Os velhos estão… velhos! Não precisavam passar por essa vergonha”, disse à mulher, enquanto essa lixava as unhas e mal ouvia o marido. (O que ele não sabia é que, naquele mesmo dia, o único filho, de 14 anos, inspirado pela coragem do tio e sem saber da separação desse, havia resolvido sair do armário para o pai e para a mãe, assim que chegasse da escola… ia até apresentar o namoradinho. Ia ser um “must”, pensou o garoto.)

O outro irmão morava fora do Brasil e não tomava conhecimento da família por aqui. Ligava uma vez por mês e raramente respondia o WhatsApp. Para desgosto da mãe, afastara-se de todos. “Um esquisito, nunca vi!”, dizia o pai com raiva e um pouco de mágoa. A mãe desabafava, claro, com o padre Emílio.

O avô de 96 anos, que era surdo e enxergava mal sem os malditos óculos, percebeu uma certa agitação na casa, mas não sentiu vontade de perguntar o porquê. Estava com o intestino preso de novo e não ia ao banheiro fazia cinco dias. Tinha mais com que se preocupar. Gente estranha aquela. Morava com a família do filho porque não queria ir pra tal casa de repouso. “Asilo, Euclides. Você queria me mandar para o asilo. Pare de dourar a pílula. A-si-lo! Esta casa é minha. Daqui, não saio”. E foi pro banheiro, cheio de esperanças. Nem viu quando o neto chegou de mala e cuia.

O moço estacionou o carro perto da calçada. No rádio, uma canção no A-Ha – “There´s never a forever thing” (“Nada dura pra sempre”). É isso, pensou. Não dura. E pegou as malas cheias de roupas, sapatos e alguns livros. O apartamento era do outro. Pretendia nunca mais voltar lá. Queria começar vida nova – mas, nesta casa, da qual saíra fazia cinco anos, seria difícil. Respirou fundo e fez o sinal da cruz sobre o peito, pedindo paciência. Olhou o celular uma última vez. Nenhuma mensagem dos parentes ou dos amigos do outro.

Pra completar os clichês, apesar de traído, ele saía da relação como vilão. Lógico!

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Professor, confesso que ri bastante, viu! Acertou em cheio com a foto usada nesta Crônica, resumindo, “matou a pau”. Eita família porreta! Vovô então todo empachado. Continuo rindo, rindo alto.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Muito boa crônica. Alegre e real!!!!
    “Êta” família arretada e ….NORMAL. tem de tudo.
    Parabéns

  3. Clarice keri disse:

    Ótima história e, boa comparação com a familia Monstro, como em qualquer família, ninguém se preocupou com os sentimentos dele, adorei, obrigada.

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