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CANTANDO

Minha mãe cozinhava exatamente

arroz, feijão-roxinho,

molho de batatinhas.

Mas cantava.

                            “Solar”, Adélia Prado.

 

 Quando eu era menino, os mais velhos nos ensinavam por meio de metáforas e ditados. Não sei se, hoje, ainda é assim, mas vejo um certo ar de espanto e surpresa por parte de meus alunos quando cito algum provérbio da minha infância. Sem falar na dificuldade que eles têm quando alguma questão de vestibular aborda esses ditos populares.

Um dos que mais me lembro é: “Quem canta seus males espanta”. É comum caminharmos pelas ruas deste Brasil e ouvir assovios e cantigas da boca de trabalhadores cuja realidade, muitas vezes, é dura e difícil; trabalhadores cuja rotina lhes exige esforço e suor, além das más condições de higiene e até mesmo exaustão física a que são submetidos. São motoristas e cobradores de ônibus, pedreiros, carregadores de lojas de móveis, feirantes, faxineiros de rua, lixeiros e por aí afora. Profissionais que, muitas vezes, para driblarem esse quotidiano estafante, encontram na música uma forma de “escapar” das armadilhas da tristeza e da depressão.

E eles vão cantando, assoviando, cantarolando suas músicas prediletas, como a procurarem forças para suportarem o trabalho duro. Não me lembro de ter visto isso em alguns outros países aonde fui – na verdade, quando ouvi, eram mais os latinos que assim o faziam do que saxônicos, eslavos etc. Será que os latinos são mais felizes?

Fernando Sabino tem uma crônica (“Ária para assovio”) na qual ele conta que, uma vez, na Inglaterra, ele assoviava na rua e notou que as pessoas o olhavam com curiosidade, certamente estranhando seu ato de emitir um som no meio da multidão: “Um dia, percebi que os ingleses me olhavam de passagem, com aquele ar disfarçado que eles têm de fingir que não estão reparando. Só mais tarde descobri a razão: eu vinha distraído pela rua, assoviando um samba”.

Venho de uma família de “cantores” – minha mãe cantava enquanto lavava nossa roupa; meu pai cantava Gilberto Gil; meu avô cantava enquanto fazia seus trabalhos manuais; minha avó cantava enquanto cozinhava e limpava a casa. Ela adorava “A Jardineira”, marchinha de Carnaval, muito popular nos anos de 1940, uma composição de Humberto Porto e Benedito Lacerda, na voz de Orlando Silva. Dizia assim na sua primeira estrofe: “Oh, Jardineira, por que estás tão triste?/Mas o que foi que te aconteceu?/Foi a camélia que caiu do galho/Deu dois suspiros e depois morreu/Vem, Jardineira/Vem, meu amor/Não fiques triste, que este mundo é todo teu/Tu és muito mais bonita que a camélia que morreu…”. Era gostoso ouvi-la cantando isso pela casa.

Os anos se passaram, cheguei à minha adolescência e, em 1983, com 19 anos, tive de ir para o Exército. Ainda estávamos sob o regime militar, um pouco menos terrível que na década anterior, mas ainda regime militar. Não bastasse a coisa em si, havia minha profunda aversão a tudo aquilo – farda, armas, hierarquia, abuso de poder da parte de vários praças e oficiais, serviços de guarda, acampamentos etc. Havia amigos no quartel que gostavam de tudo aquilo, mas eu detestava.  Queria que aquele ano acabasse logo, queria que o pesadelo terminasse para eu voltar a estudar, para poder ficar no meu quarto lendo, ouvindo música, assistindo aos meus filmes; eu queria retomar minha “liberdade” de ir e vir, sem ter medo de que a PE – Polícia do Exército – me parasse na rua e me punisse por um cinto que não estivesse brilhando, por um corte de cabelo que não estivesse em dia, por um coturno sujo ou uma farda não engomada.

As guardas que tirávamos, tanto dentro do quartel quanto na Vila Militar – vigiando e guardando as casas dos oficiais – eram tristes e monótonas. A coisa ficava pior na madrugada e nas tardes de sábado e de domingo. Nada para se fazer a não ser ficar andando, com o fuzil a tiracolo – até as 18h – ou cruzado sobre o peito – quando a noite caía.

Lembro de muitas e muitas tardes de sábado e de domingo, frias e chuvosas, em que tudo o que eu queria era ir pra casa ou encontrar meus amigos. Nessas horas, eu cantava. Cantava baixinho músicas da minha juventude, músicas que a gente ouvia no rádio, músicas que faziam parte do repertório de cada soldado, de cada menino que, em sua maioria, queria estar longe dali.

Eu cantava baixinho, também e sobretudo na madrugada, no silêncio da noite, sob a garoa fria, torcendo para que o tempo passasse logo e outro soldado viesse me render para que eu pudesse dormir um pouco. O cansaço, o frio ou o calor intenso, a irritação por estar ali eram atenuados pela música que eu ia cantando para mim mesmo. Nada ali me atraía – havia uns oficiais bonitões, mas eles faziam parte de um outro mundo.

Eu não tinha coragem de assumir minha sexualidade nem pra mim – completa solidão. Parodiando Adélia Prado, eu caminhava triste com um fuzil na mão e uma farda no corpo… mas cantava.

E a música sussurrada era a minha companhia.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Professor, realmente “quem canta seus males espanta!” Minha mãe quando cozinhava, limpava a casa e cantalorava músicas da Emilinha Borba, era uma festa. Adorava Francisco Petrônio, depois começou a cantar músicas do Julio Iglesias. A música faz parte das nossas vidas! Hoje indo para trabalho, umas 6h30, ouvia uma voz lá no fundo, uma senhora que cantava e cantava, toda feliz. Passou por mim, nos cumprimentamos com um “bom dia!” e seguimos nossos caminhos. E ela continuava a cantar em alto e bom tom. Eu não fiz o Exército, aqui chamamos de “Tiro de Guerra” – tento imaginar a sua permanência e as dificuldades quando lá estava. Vamos cantar, ouvir músicas para que a nossa permanência neste plano seja plena. Vamos ouvir nossas músicas, aliás temos uma em especial. Parabéns pela Crônica.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Bonita e sensível crônica. Cantar, mesmo que seja intimamente é uma dádiva da natureza para os humanos. É um hábito que tínhamos, mas parece desaparecido atualmente. É porquê parece que talvez tenhamos outras preocupações além de simplesmente viver a vida. Sei lá. Pode ser.
    Parabéns pela crônica

  3. Clarice keri disse:

    Que crônica gostosa de ler, lembrei do meu pai cantarolando em húngaro e, com certeza os males foram embora, adorei, obrigada.

  4. Guilherme Sardas disse:

    Que linda crônica! Todo um relato atravessado de memórias familiares, e então o quartel e sua melancolia tão própria, e ele, o lirismo, essa dança de afetos que nos salva como quem garante, sem saber, que tudo pode ser leve e amoroso, sem exceção.

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