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HERANÇA

Eles são quatro professores que se encontram semanalmente. Amigos há mais de 40 anos, estão aposentados, e as reuniões são sempre na casa de um deles, o único solteiro. António, Bento, Bosco e Alfredo, todos na casa dos 70 anos. Este último é o dono da casa. Prefere receber os amigos e, como mora sozinho, o grupo fica com mais privacidade para conversar tudo o que quiser.

O Bento, professor de História, casado, três filhos, oito netos, é quem começa a conversa na sala ampla do apartamento antigo:

– Vocês já pensaram em fazer testamento?

É o António, também casado há mais de 50 anos, dois filhos e três netos, professor de Matemática, quem reponde primeiro:

– Não fiz e nem pensei nisso ainda. Deixar minhas coisas pra quem? Quem vai querer livros velhos de Matemática, filmes em DVD, discos de vinil?

– Eu também não pensei nisso, ainda, Bento. É o Bosco quem fala, o mais velho do grupo, viúvo há dez anos, pai de dois filhos e avô de quatro, professor de Química. – Não sei se tenho coisas que possam interessar a meus filhos. Aos meus netos, não devo ter nada, a não ser umas economias… Alfredo, e você?

Da cozinha, onde foi buscar as cervejas para o grupo, Alfredo grita que esperem um pouco. Não está ouvindo nada, cabeça enfiada na geladeira, pegando cervejas e uns queijos para os amigos. Quando volta à sala, é o anfitrião – professor de Literatura e único gay do grupo – quem pergunta:

– Do que vocês estão falando? Olha, tem mais cerveja na geladeira. Comprei bastantes. Aqui tem queijo, castanhas e uns amendoins. Fiquem à vontade.

Acomoda-se em sua poltrona e observa o grupo que faz parte de sua vida há tanto tempo. Sente-se orgulhoso por ter amigos tão queridos e de tão longa data, adora os encontros semanais, mas às vezes fica triste e um tanto melancólico pela idade que chegou para todos, tirando-lhes muito do vigor e da saúde de que sempre gozaram. Saudade da sala de aula? Nem tanto.

– O que foi que o Bento falou? O que você falou, Bento?

– Perguntei se vocês já tinham feito testamento…

Os outros três fingem irritação, mas, por dentro, estão rindo com a obsessão do amigo por aqueles assuntos. O que esperar de um homem que gostava de passear por cemitérios?

– Você estudou História demais, Bento. Daí, fica com essa obsessão por gente morta, por coisa antiga, por cemitérios e testamentos… Misericórdia, homem! – é o Alfredo quem, entre um gole de cerveja e outro, ri do amigo.

– É sério, gente! Estive pensando nisso nesses dias. Fiquei olhando meu apartamento, observando tanta coisa que acumulei nesses anos todos de docência. Até teses de doutoramento de dez, 15 anos atrás eu achei na minha estante. Não pode! Pra que tanta coisa? Preciso me livrar do que não uso mais e, ao mesmo tempo, pensar para quem eu deixaria alguns objetos de valor mais sentimental. Já ouviram falar na “faxina da morte”? Diz que lá na Suécia isso é supercomum. Sei que o assunto não é agradável, mas tive vontade de falar com vocês, que são meus melhores amigos. Vejam, temos muita coisa em nossos apartamentos – livros, móveis, quadros… coisas que acumulamos com o tempo e com nossos salários na universidade, além de nossas reservas no banco. Eu sei que vocês têm uma graninha guardada, que não são bobos, nem nada. Então… já pensaram em organizar isso tudo para não criarem problemas pros filhos e netos?

Alfredo não os tem. Quando muito, um ou outro sobrinho que o visita de vez em quando. Os irmãos, nunca. Pensa neles por um tempo e volta à realidade. De repente, sente-se muito solitário, uma solidão que ele não sabe explicar, nem definir. Tem amigos? Os melhores do mundo. Mas não é isso – é uma “solidão de sangue”, uma “solidão que vem da família”, ou melhor, da ausência dela. Nascer na mesma casa nem sempre significa afinidade. Sabe que sua família está ali, naquela sala, faz mais de 40 anos. É isso!

Os outros fazem silêncio, cada um tomando sua cerveja na tarde quente, beliscando queijos e comendo amendoins e castanhas da mesa de centro, na ampla sala forrada de livros de cima a baixo. O professor de História se sente estimulado a continuar:

– Então, a tal faxina sueca. Além de deixar tudo organizado quanto partirmos, ainda prega que nos desfaçamos de tudo aquilo que não nos é mais útil, coisas materiais que não nos servem mais e estão apenas acumulando pó. Diz que no Japão existe uma prática semelhante, que prega que devemos viver no presente, desapegando do passado ao rejeitar o excesso de bens materiais. Uma limpeza para que a vida da gente, neste estágio, seja leve, sem o peso de tanta bugiganga e de tanta recordação. Acho que faz sentido.

Os outros ficam pensativos. Tal assunto, dito assim, de maneira tão pragmática, não torna a reunião pesada, mas põe os amigos para pensar sobre a vida, sobre os bens e sobre quem poderia valorizar o que conquistaram com o suor de tantas aulas, de tantas horas de correções de provas e trabalhos, de tantos fins de semana debruçados sobre livros, de tanta dedicação à pós-graduação, depois aos concursos nas universidades, aos orientandos… Há algum parente que possa calcular o que foi tudo isso?

Não! Não se transfere o amor por um livro, por um filme, por um quadro, por um apartamento. Não se transfere o que se sentiu na compra de um objeto desejado por muito tempo; não se transfere a emoção de um concerto visto pela primeira vez, guardado metonimicamente na gaveta com o ingresso amarelado pelo tempo, ou o exemplar de um livro raro autografado pelo autor. Não se transfere o sentimento provocado pela primeira viagem a um país que se queria muito conhecer. Simbologias de uma vida que não se transfere de um coração a outro. E nada disso tem a ver com dinheiro ou moeda de qualquer país. Não!

Na tarde, ainda falam de muita coisa – de futebol, de exames médicos, de remédios, de colegas que estão se aposentando, da Educação neste país, de política, de vinhos e de restaurantes. Alfredo, o mais dinâmico, sempre preencheu sua solidão com amigos, filmes, livros e viagens. Na ausência de esposa e filhos, e mesmo de um namorado (“Não tenho mais idade pra isso, gente! Por favor!”).

– Meus amigos, estou com viagem marcada para a Europa, para daqui a dois meses. Áustria para um festival de verão de música clássica, depois Polônia, Romênia e Hungria. Quem me acompanha?

António se anima com o convite do amigo. Combinam de conversar sobre isso na próxima semana. Bento e Bosco gostam da ideia também. Uma viagem só os quatro amigos… como nos velhos tempos. Muita risada, muita cultura, muita conversa, uma convivência intensa pelo Velho Mundo durante 20 dias. Por que não?

Alfredo, como sempre, incentiva os amigos. Eles precisam de alguém que os anime a essas aventuras. Que diabo! Trabalharam tanto! Merecem aproveitar a aposentadoria. Depois de assistirem a “Cantando na Chuva”, Bosco olha o relógio e diz que precisa ir embora. Os outros dois também se levantam. Conversariam no fim de semana, ainda que por telefone, para acertarem as coisas da viagem.

Cada um pede um carro de Uber. Não queriam deixar de beber suas latinhas de cerveja por terem que dirigir. Abraços na porta do Alfredo e, depois, abraços na portaria do prédio. Alfredo, como sempre, na janela da sala, acenando para os outros três pelo vidro.

Cada um toma o seu rumo de casa, ainda com a conversa de testamento na cabeça e não tendo a mínima ideia de quem poderia, um dia, dedicar o mesmo amor àquilo tudo que haviam conquistado com tanto sacrifício e trabalho.

Porque amor se ensina, mas não se transfere.

 

Escrevi este texto no 15 de outubro de 2024, pensando com carinho nos Professores que tive e nos Professores com quem trabalhei ao longo de muitos anos. A todos, um abraço fraterno e meu “muito obrigado”.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor, excelente crônica. Interessante a conversa entre esses professores. Testamento? A quem pode interessar se não tiver dinheiro ou bens materiais envolvidos?
    Como professor eu penso que não devemos nos preocupar com testamento, com quem ficarão nossos discos de vinil, etc
    Acho que existe algo que devemos saborear e guardar em nossas memórias: as conversas com nossos amigos (verdadeiros) na sala dos professores e reuniões como essa desses quatro amigos descrita na crônica.
    Parabéns, brilhante!!!!!@

  2. Shirleyne Diniz disse:

    A cada cronica te conheço mais a fundo. Escreve com clareza e leveza mesmo sobre temas que poderiam trazer tristeza e melancolia.

  3. Professor, sempre falo que fomos e somos privilegiados em termos tido professores tão amados e queridos, eles nos deixaram um legado maravilhoso.
    Linda homenagem aos professores que você teve e com quem trabalhou! Lembrei-me dos que tive.
    Hoje temos uma professora na família, que orgulho.

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