As relações de hierarquia (portanto de poder) são complexas e até excitantes para muita gente. Como exemplo, cito as relações médico-paciente e professor-aluno. A primeira, analisei na minha tese de doutoramento; a segunda, tenho vivenciado por mais de 30 anos.
Particularmente, enquanto estive na sala de aula, em um cursinho pré-vestibular (nos moldes que, hoje, parecem estar desaparecendo), vivi e presenciei momentos engraçados, interessantes, difíceis e até inimagináveis. São muitos os episódios! Estive me lembrando de alguns.
Eram muitos os comentários e rumores sobre professores que saíam com alunas – algumas bonitas, outras nem tanto. Como dizíamos à época, “o avental é sedutor”. Claro que sedutor era o saber que o professor expunha, além de sua autoridade, seu carisma e, no caso de alguns, sua própria beleza física.
Quando entrei nesse cursinho, não fui para a sala de aula – devido à minha inexperiência, fui ser plantonista: eu ficava na sala de estudos tirando dúvidas dos alunos. Lembro que, no meu primeiro plantão, uma aluna veio me mostrar uma redação e disparou: “Você tem amizade com o professor fulano? Sou apaixonada por ele. Sei que ele é casado, mas não aguento mais. Não aguento mais sofrer. Eu ainda vou me matar por causa desse cara!”. Tomei um susto. O que era aquilo, meu Deus? Quem era aquela maluca que queria se matar por causa de alguém que eu nem conhecia? Era meu primeiro dia na escola. Sei que ela não se matou, mas também não se casou com seu objeto de desejo. Casou-se com outro professor, amigo nosso, e com ele teve filhos. Estava mesmo destinada ao corpo docente! (Hoje, sou amigo da sua antiga paixão e rimos muito cada vez que nos lembramos desse fato…). Agora, que foi assustador, foi!
Lembrei de um outro caso. Uma menina linda, cabelos pretos, olhos azuis, muito doce, que um dia veio até mim, chorando, pedindo para conversar um pouco depois que a aula terminou. Eu nem imaginava o que podia estar acontecendo, mas era aquilo que vi muito por lá: ela estava apaixonada por um colega meu, casado, que também lhe dava aula e, pelo jeito, tinha muito jeito com as alunas. O cara tinha acabado de ser pai. Tentei ouvi-la e fazê-la ver que não havia futuro naquilo. Ela tinha mesmo que procurar alguém de sua idade, um namorado com quem pudesse ser feliz. Casos como esse, vi aos montes! E, não sei por que, as alunas vinham conversar comigo. Às vezes, eu até falava com o professor em questão; às vezes, nem valia a pena.
Tenho, por outro lado, amigos que se casaram com alunas e são muito felizes ao lado delas. Acontece com certa frequência também. E fico imaginando as histórias divertidas que terão para contar aos seus filhos.
Eu mesmo nunca tive nada com aluno por dois motivos muito simples: primeiro, que, quando comecei a dar aula, eu mesmo tinha um parceiro; segundo, eram outros tempos. Além de poder tomar um processo por homossexualidade, ainda seria demitido por justa causa. Não, obrigado! Eu precisava trabalhar e não ia arriscar meu pescoço por causa de um rapaz bonito. Eu não era moralista, era ajuizado. Outros tempos! A homofobia comia solta e não era crime. Crime era ser gay!
Dávamos aula para 150, 200 alunos por sala. Tablado, microfone, e aquele monte de aluno nos avaliando. Nunca fui bom em contar piada, de modo que, quando os fazia rir, eram coisas que eu contava sobre a matéria… ou quando eles mesmos protagonizavam alguma situação. Como uma menina que, no meio de uma aula minha, no meio de uma explicação, levantou a mão. Sala cheia, todos em silêncio, professor e alunos se voltaram para ela. “Professor, o senhor é casado?”. Risos que começaram a se espalhar. “Por que você quer saber disso agora?”, eu, procurando me manter sério. “É que meus pais se divorciaram e minha mãe tá sem namorado”. A sala explodindo de rir. A aula praticamente acabou ali.
Lembro também de um aluno tímido e sensível, com quem tive muito cuidado para não o magoar. Eu dava sempre a terceira aula da manhã na sala dele, ou seja, a última antes do intervalo. Dado o sinal, todos se levantavam com pressa, porque era um intervalo de apenas 20 minutos. Durante quatro semanas, ou seja, um mês, um aluno vinha até mim e me dava uma caixa de bombons da Kopenhagen ou da Ofner, doces de alta qualidade e caros. Na verdade, ele os entregava a mim em nome de um amigo dele que saía da sala logo que o sinal batia porque era tímido. Então, ele vinha rindo e me dava a caixa de chocolates com um cartão de “Bom dia, professor” ou “Espero que seu dia seja doce” etc. Eu brincava com eles, dizendo: “Chocolate é a segunda melhor coisa do mundo”. Quando, maliciosamente, me perguntavam qual era a primeira, eu respondia: “Dar aula”. E a turma ria diante do absurdo da resposta, claro.
Bem, houve um dia em que o próprio rapaz veio me entregar a caixa de bombons, e não o amigo. Ele finalmente criou coragem e veio falar comigo. Era um rapaz bonito, de seus 19 anos, cabelos e barba pretos. “Professor, pro senhor”. “Obrigado, fulano”, eu disse. “Mas pare de gastar dinheiro comigo”. E ele: “Professor, eu não tenho chance mesmo?”. Como eu sempre usei uma aliança prateada e enigmática no dedo anelar, disse a ele que eu era casado etc. Não era mais. Foi um modo que encontrei de não o magoar e de não desrespeitar seus sentimentos. Durante todo o ano, ele me olhava meio triste, mas eu não podia fazer nada.
Um outro caso de que me lembro muito ocorreu num fim de ano, próximo ao Natal. A primeira fase da Fuvest havia passado, portanto as salas estavam com pouquíssimos alunos – só os que estavam aprovados para a segunda fase é que iam ao cursinho, óbvio. Era uma aula da tarde – por volta de 20 de dezembro. Dez ou doze alunos. A sala enorme praticamente vazia. Indiquei os exercícios e sentei-me num canto com um livro, enquanto eles resolviam as questões de Português. A aula transcorreu normalmente. Quando bateu o sinal, alguns se levantaram e um rapaz veio até mim.
Pediu para me dar um abraço, deu um beijo no meu rosto e entregou-me um bilhete. “Olhe depois, Vitão”. Quando cheguei à sala dos professores, li: “Eu também acho que chocolate é a segunda melhor coisa do mundo. Você não quer me ensinar a primeira? Sou maior de idade”. E o celular do moço para que eu o procurasse.
São lembranças que guardo com carinho, com um riso de satisfação e prazer. Eram moças e moços bonitos, interessantes, e o interesse deles por nós era também um elogio, penso eu.
Claro que há o lado sedutor da autoridade, como eu dizia no começo do texto. Mas essa sedução só acontece quando existe a admiração, e parece que isso vem se perdendo. Estou fora da sala de aula faz algum tempo. Pelo que me contam hoje, a maioria dos alunos não demonstra mais esse carinho, muito menos admiração, e qualquer coisa pode parecer assédio. Lógico que havia alunos antipáticos e salas nas quais a gente não tinha prazer em entrar, mas isso era normal.
Tenho saudade de algumas coisas – abraços, risadas, fotos, palavras de duplo sentido e camaradagem. Sou do tempo em que cursinho era uma época inesquecível para os alunos – e para os professores também.
2 Comments
Olá Prof Vitor
Excelente crônica. Boas lembranças da época em que fomos professores de cursinho. Temos historias peculiares, saborosas e inesquecíveis.
Parabéns
Nossa ,realmente eu embalei na História,ficava imaginando os rostos, as situações. Acredito que tenha sido para o Cronista uma Época com muitas observações desta relação de Poder e Fascinação entre Professores e Alunos.
Inclusive acredito que o Cronista tenha muito mais Histórias a contar,caso tenha,gostaria muito de as ler.