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FELICIDADE

“Quantas vezes a mente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda a parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!”

Ele fechou o livro e ficou pensando. Lá fora, a tarde do 31 de dezembro estava cinzenta, chuva caindo, vidraça molhada, só o barulho de um carro ou outro na rua. Completa solidão que se tornara rotina. Acabara de ler os versos de Mario Quintana – muito simples em sua superfície, mas bastante profundos sobre saber enxergar a felicidade.

Ficou pensando se algum dia esse sentimento tinha estado em suas mãos, ou se jamais o havia experimentado. Fechou os olhos, mas não dormiu. Viajou pra dentro de si mesmo, uma viagem por vezes dolorida, exaustiva, um caminho de pedras pequenas, que lhe causavam feridas nos pés. E se lembrou.

A perda da virgindade com a professora do colégio, 15 anos mais velha do que ele. A ousadia, o suor no rosto depois de tudo terminado, sua timidez diante daquela mulher tão mais experiente e tão conhecedora da vida. A satisfação masculina de não ter decepcionado a fêmea, depois a ligação para o melhor amigo a fim de contar-lhe o ocorrido. Na casa da professora? Na casa dela, acredita? Vou te contar tudo! E contou. Tinha virado homem!

Depois, as primeiras namoradas na própria escola, e o ciúme da única para a qual ele contou a aventura com a professora que ainda lhes dava aula. O ódio da garota, o ciúme latejando, a raiva. Não me conte mais nada, tá legal? Não quero saber! Com aquela velha? Que nojo! E ele fingia ficar sério, satisfeito por dentro, sinal de que a namorada gostava dele e sabia que ele era desejado por outras. Orgulho besta, coisa boba, coisa de moleque.

Outras vieram; algumas mais bonitas, outras nem tanto. E a mãe lhe cobrando: um pouco de seriedade e menos folia com essas meninas, rapaz! Não sossega com nenhuma? Já tem 20 anos!

A entrada na faculdade, o olhar trocado com a mais bonita da sala, logo no primeiro dia de aula. Mas, como eram muitas, ele preferiu ir com calma – e se estivesse se apressando demais e perdendo a chance de conhecer alguma garota mais interessante? O papo no intervalo, a troca de telefones, porque podiam precisar falar das aulas, claro. Por isso, é bom a gente ter o número um do outro. Se meu pai atender, desligue, tá? Ele é muito careta e não vai gostar de saber que um homem ligou lá em casa. Tá bom, desligo. Tudo é tão mais fácil, hoje, com o celular! Como é que a gente vivia sem isso?

O namoro engatado, firme, não se sentavam perto um do outro porque ele ficava com gracinhas e ela queria prestar atenção à aula. Que coisa! Que fogo! Sossega, menino! A gravidez indesejada.

O bebê que ela não quis porque ambos eram muito jovens. Ele não se opôs ao aborto e até ficou aliviado.

O curso matutino de engenharia, os amigos nos bares ao redor da faculdade, as dúzias de cervejas para comemorar qualquer coisa – feriado prolongado, término de provas, aniversário de alguém da turma, último dia de aula. O excesso de álcool, as palavras e as trocas de olhares, a visão um tanto embaçada, os sentimentos contidos que afloravam depois de seis ou sete garrafas.

Os abraços nos amigos, um abraço mais forte de outro rapaz, os corpos que se tocavam e a excitação experimentada pela primeira vez com um corpo igual ao seu. Os dois saindo do bar sem que ninguém percebesse, nem a namorada, entretida com as amigas. Pra onde você vai me levar, cara? Pra minha casa. Tô sozinho hoje. Meus pais viajaram. Como assim, pra tua casa? As palavras que quase não saíam, não exatamente por causa do álcool, mas principalmente porque ele também queria aquilo. Não ofereceu resistência.

A noite passada com o amigo, que não deu chances para questionamentos, nem grilos. Desencana, cara, eu olho pra você faz tempo. Pra mim? Mas você tem namorada! E daí, tô a fim de outra coisa, não de te namorar. Isso é loucura, meu! Loucura das boas, né? Entra.

O prazer inusitado, o beijo que nunca esteve em seus planos, guardado a sete chaves, talvez, no fundo de um cofre íntimo, que ele não ousava abrir – e que foi aberto pelo amigo de classe, menos covarde do que ele.

Depois, o término com a namorada. A paixão pelo amigo. Como assim? O que está acontecendo na minha vida? O relacionamento escondido de todos que durou um ano. Outras pessoas vieram – homens e mulheres. A insatisfação, uma procura interminável, um desassossego que o levava ao sabor do vento. Bissexual não tem parada?

A gravidez de outra garota. Na verdade, duas vezes. Mais dois filhos impedidos de vir. Desta vez, ele estava disposto a assumir a paternidade, mas, de novo, não se opôs, e ela os tirou. Você, um pai? Ia me deixar sozinha, cuidando das crianças. Isso, sim. Intervalo de um ano entre um aborto e outro. Sem romantismo, a relação acabou. Ela o conhecia melhor do que ele mesmo.

O professor da faculdade, um coroa bonitão, como as meninas diziam, para ciúme e inveja dos rapazes. O encontro casual na loja do xerox, o professor com a pasta e as cópias de textos na mão. Ele ajudou. O mestre agradeceu. Professor carrega muita coisa, não tenho mão para tudo isso. A cerveja no bar do outro lado da rua. Papo gostoso, envolvente – cada um, a seu modo, envolvendo o outro. O apartamento do professor. Nunca estivera com alguém (tão) mais velho. Lembrou-se da professora do colégio, mas entre ele e o mestre havia bem mais do que 15 anos de diferença. O sexo bom, a troca de confidências quando os segredos já não tinham mais razão de ser. Fazia tempo que eu te olhava, rapaz! Você nunca percebeu, né? Sério, professor? Nunca percebi mesmo! Também, você vivia cheio de namoradas. Teve até um namorado, não teve? Como o senhor soube? Ora, sou experiente, enxergo longe, mocinho. Mais um caso secreto. O término quando saiu da faculdade. Quanto tempo deve ter ficado com o professor? Cinco meses?

A vida adulta. Tantas pessoas que ele pensou ter amado e por quem pensou ter sido amado. Alguns términos que foram um alívio; outros que foram dolorosos; outros indiferentes. Mulheres e homens que foram e vieram. Mulheres e homens que lhe prometeram amor e felicidade, além de suas possibilidades e forças. A passagem do tempo. A juventude se foi, a maturidade lhe chegou. E agora, meu filho, vai continuar sozinho, morando neste apartamento tão grande, sem uma esposa e sem filhos? Você só tem 47 anos, pode muito bem se casar e ser feliz ainda.

Ainda! O advérbio na boca do pai como a salientar que não lhe restava muito tempo pra mudar de vida. Pra viver a vida que queriam que ele vivesse! A vida ideal dos outros.

Os filhos que não nasceram vieram-lhe à mente. Como estariam hoje? Que pai ele teria sido?

Ficou pensando nos versos que acabara de ler. O pensamento voltou: sua felicidade estivera diante dele e nunca fora notada ou ele jamais tinha sido feliz? Foi até a janela e olhou a chuva lá fora. O ano se acabava.

Inutilmente, tentou adivinhar o futuro. Inutilmente.

 

A todos os meus amigos queridos, um 2025 com muita saúde, conquistas e realizações. Que sejam dias alegres, e que vocês tenham muitos motivos para sorrir!

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Às vezes a “felicidade bate em nossa porta” e não nos damos conta, professor!
    “Que o riso será mais barato em diante / Que o berço será mais confortável / Que o sonho será interminável / que a vida será colorida, etc e tal /
    Que a Dona Felicidade baterá em cada porta”… (momento Frenéticas).

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Belo texto. Profundo, sobre a vida.
    Qual e a vida ideal? A eterna procura. Enquanto passam os anos nesta procura pela vida ideal, ela sorrateira vai escorrendo sob nossos olhos e se vai.
    Parabéns pela crônica

  3. Baltasar Macias Pereira disse:

    Linda Crônica e triste ao mesmo Tempo

    Realmente a Felicidade é algo subjetivo e difícil de definirmos.

    Acredito eu que Felicidade são momentos como a Tristeza.

    Muito interessante a história deste rapaz,inquieto,ansioso e quem não será assim.

    Questionamentos assim acredito passam pela mente de todos nós.

    Feliz Ano Novo ao Escritor desta Triste Crônica que fala de um Assunto muito sério.

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