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CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 2

A Editora Nova Fronteira publicou um bonito livro no qual está compilada parte da correspondência entre Cecília Meireles e Mário de Andrade – “Cecília e Mário”. São cartas em que os dois expoentes do Modernismo brasileiro demonstram uma verdadeira apreciação literária e admiração mútuas, além do carinho e do respeito contantes na amizade que os uniu.

As cartas foram fornecidas pelo IEB – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, e, nelas, os mais diversos assuntos são abordados pelos dois amigos escritores.

 Abaixo, duas delas, nas quais, primeiro, a poetisa carioca se dispõe a ajudar o escritor paulista a enviar alguns de seus livros a Portugal, ao mesmo tempo em que, modestamente, recusa-se a acreditar que haja rosas que levem o seu nome.

Na resposta de Mário, o agradecimento pelo favor prestado pela amiga querida e a doçura com que reafirma que as flores só podem ter o nome de Cecília por estamparem a sensibilidade e a delicadeza da poetisa.

       

        Mário de Andrade (1893-1945) notabilizou-se por ter atuado como poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo e historiador de arte, além de crítico e fotógrafo.  É considerado por especialistas em sua obra como “o mais prolífico missivista da literatura brasileira”. Manteve uma correspondência intensa com vários expoentes de nossa cultura – felizmente, grande parte documentada e registrada em livros.

Cecília Meireles foi poetisa, jornalista, cronista e professora; fundou a primeira biblioteca infantil no País. É considerada “a maior representante feminina da nossa tradição lírica”. Dona de uma escrita elegante e, ao mesmo tempo, vigorosa, Cecília soube equilibrar sentimento e razão no ofício de observar e analisar as inquietudes e paixões próprias do ser humano.   

Nas palavras do professor e crítico Alfredo Bosi, “Mário foi modernista da primeira hora, e o movimento de 1922 teria sido impensável sem a força de sua ação e da sua palavra. Cecília Meireles (1901-1964), por sua vez, vinda do Simbolismo, exprimia nas cadências do seu verso um modo de ser lírico que parecia aproximá-la antes da tradição portuguesa que dos fogachos vanguardeiros”. O professor cita, no prefácio do volume, a escritora francesa Simone Weil, segundo a qual, “a amizade não deve tolher as diferenças; nem estas, a amizade”.

Apesar de suas diferenças, os registros indicam que os autores se leram um ao outro intensamente – sobretudo nas décadas de 1930 e 1940. Dessa leitura e desse “encontro”, nasceu a amizade, cuja ternura e lirismo podem ser notados nos textos selecionados.

 

 

Rio de Janeiro, 05 de março de 1943.

Caro Mário: console-se das suas apoquentações de enfermo pensando que eu também aqui estou cheia de nevralgias! Embora não saiba se é consolo suficiente…

Logo que recebi seu bilhete, pensei num caminho talvez melhor que o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda): o de “Livros de Portugal” – onde há uma gente simpática e mais eficiente. Falei logo para lá, e facilitam a remessa de seus livros junto com os da casa, talvez por um navio espanhol. – está, neste momento, na Argentina. Disse-me o senhor Souza Pinto – a quem ficaria bem você agradecer – que, por você e por mim, faria isso. Mas que me mandasse já o pacote, pois estas navegações de agora são, como você sabe, imprevistas.

Quanto às rosas, Mário, não têm propriamente o meu nome, mas o de um homônimo! É a única situação da minha vida em que “faço farol” à custa alheia! Mas dizem que são flores lindas. Já me deram mudas, que não vingaram aqui.

Fique bom e mande-me os livros com a carta anódina! Todos os votos e saudades da

                                                                 Cecília

 

São Paulo, 13 de março de 1943.

        Cecília Meireles,

A sua confissão é uma das modéstias mais irritantemente frágeis que jamais escutei. Não houve, não há e nem pode haver outra Cecília Meireles neste mundo. Parece até absurdo que você ignore um fenômeno linguístico chamado homofonia! Imagino bem que ceciliameirelizem por aí algumas nuvens inconsistentes, mas Cecília Meireles só existe uma. Só uma, capaz de abençoar a beleza e a felicidade de uma rosa. É Você, tem de ser Você, não pode ser senão Você. Ora, minha amiga Cecília Meireles, completa, integral e exclusivamente Rosa Cecília Meireles, pois será que a sua modéstia errada lhe tenha escurecido tanto a psicologia a ponto de Você não imaginar que eu não tivesse imaginado os casos burlescos da homofonia?! Mas as homofonias só existem nos cérebros plácidos dos ginasianos e dos acadêmicos. Só existe uma Rosa, só existe uma Cecília, só existe uma Meireles, é a Rosa Cecília Meireles, una e trina em minha adoração afetuosíssima. A quem devo mais, neste momento, um favor.

                                            Mário de Andrade

Em todo o caso, lá foram os livros para Portugal, e carta muito grata ao lusíada Souza Pinto, e um livro a ele também que tomei o cuidado de evitar parecesse o pagamento indiscreto do favor. Se, por acaso, precisar enviar mais livros para a Conchinchina ou para Vladis-Kawaia-Privatehka, que deve ser na Rússia, me socorrerei de Você.

                                                                       M.

 

In: MEIRELES, C. Cecília e Mário, 1ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1998, pp. 305-306.

 

 

 

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Professor, quanta riqueza nesta Crônica e muitos aprendizados, também. Sempre um deleite poder ler algo que nos acrescenta. Após a leitura, meu vocabulário também passou a ser mais rico.
    Obrigado!

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Deliciosa crônica. Volta às cartas! Quabeleza lírica e linguística na correspondência de Cecília e Mário de Andrade. Quanto carinho!!!!!!
      Parabéns Parabéns

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