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“A verdadeira riqueza não está em acumular, mas em reduzir necessidades” – José Batista, escritor.

 

Tive que dar uma aula de Redação para vestibulandos sobre o tema “Insatisfação na Contemporaneidade”. Em tempos de um consumismo desenfreado e de tanta ostentação nas redes sociais, não foi difícil falar com a moçada sobre como as pessoas estão cada vez mais insatisfeitas, mesmo os de vida abastada.

O cantor e compositor americano Bruce Springsteen escreveu uma canção para seu disco de 1978 (Darkness on the edge of town) intitulada “Badlands”, na qual vemos os versos: “Poor man wanna be rich/rich man wanna be king/and a king ain´t satisfied til he rules everything” (mais ou menos: “O pobre quer ser rico/O rico quer ser rei/e um rei só se satisfaz quando manda em tudo”). Assim é a ambição de muita gente que, mesmo possuindo muito, não se satisfaz, querendo sempre mais e mais. O céu é o limite para essas pessoas, e, consequentemente, a infelicidade, porque são incapazes de se sentirem bem com o que já possuem.

No mundo das histórias em quadrinhos, a personagem clássica vem a ser o Tio Patinhas – o tio multimilionário do Pato Donald, que não se cansa de criticar os hábitos perdulários do sobrinho, ao mesmo tempo em que demonstra sua sovinice e vive repetindo que a “coisa mais importante do mundo é o dinheiro”. Ele tem uma caixa forte e nada com prazer na piscina de moedas de ouro que possui.

Lembrei-me também de “O Avarento”, peça do dramaturgo francês Molière (Jean-Baptiste Poquelin), do século 17. Na comédia, Harpagão é um homem atormentado por seu pão-durismo, desconfiando de tudo e de todos, com medo de ser roubado. Guarda todo o seu dinheiro em casa e teme que seus filhos se casem com gente pobre. Molière retrata bem o caso clássico e atemporal do homem cujo dinheiro o governa. Harpagão é um escravo de sua avareza, como só poderia ser. Não por acaso, a peça nos faz lembrar do velho ditado: “Quanto mais posses, mais escravidão”.

Na mesma aula, falei sobre “O Cortiço”, romance naturalista de Aluísio Azevedo (século 19), no qual o autor não está propriamente preocupado em construir um enredo, mas em criar personagens marcantes. Chamei a atenção dos alunos para a ascensão social do comerciante português João Romão, dono de uma pedreira e do próprio cortiço. Romão, com o intuito cego de enriquecer, guarda cada centavo e explora a escrava fugida Bertoleza, para quem forjou uma carta de alforria. Bertoleza lhe é fiel, trabalha de sol a sol, mas terá um destino triste: Romão consegue se casar com Zulmira – moça rica – e, diante do inconveniente de ter Bertoleza em sua vida, denuncia a escrava para seu antigo dono. A escrava é recapturada e, ciente da traição e da ingratidão do português, se suicida.

São muitos e muitos os exemplos da ganância e da ambição desmedidas trazendo a infelicidade – na ficção e na vida real. Lembremos: a Avareza é um dos chamados Pecados Capitais.

Finalmente, citei uma estrofe da bonita música do Barão Vermelho, “Amor pra recomeçar”, de 2022. Ela diz assim: “E eu desejo que você ganhe dinheiro/Pois é preciso viver também/E que você diga a ele pelo menos uma vez/Quem é mesmo o dono de quem”.

Quando terminei a aula, fiz uma afirmação que deixou os alunos pensando. Eu disse a eles que, eu tinha certeza, na idade em que se encontravam, os bens materiais e uma carreira de sucesso financeiro ocupavam lugares muito mais importantes em suas vidas do que, por exemplo, a preocupação com a saúde ou com o amor.

Ninguém me contestou.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Professor Vitor, a frase do escritor José Batista caiiu como “uma luva”, sábio! Bruce Springsteen foi certeiro nos versos de “Badlands”. Cabe-nos uma reflexão sobre este mundo de pessoas tão egoístas. Outros adjetivos me vêm à mente, mas não nos esqueçamos dos avarentos.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Muito interessante e real a sua crônica. Acho que vivemos em um mundo governado pelo “vil metal”
    Parece que a nossa geração (minha e a sua” aconteceram a muitos séculos. Parece que hoje vivemos em um mundo irreal.
    Parabéns pela crônica

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