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A AIDS PELO CAMINHO

A liberdade sexual conquistada no fim da década de 60 teve que ser reprimida pouco menos de 20 anos depois. O mundo não estava preparado para o que viria – e a alegria transformou-se em medo, angústia e perdas.

 

A AIDS PELO CAMINHO

Acho que todos aqueles com mais de 40 anos têm uma história para contar sobre a Aids. De alguma forma, todos fomos atingidos por ela no começo dos anos 80 – alguns durante a década, outros um pouco mais tarde. O fato é que há (ou deveria haver) um comportamento sexual antes e outro depois do aparecimento dessa terrível doença, como se ela fosse mesmo um divisor de águas.

Acabei de ler o interessante livro de Eduardo Jardim, “A doença e o tempo – Aids, uma história de todos nós” e, nele, o autor traça a cronologia dessa enfermidade: desde o contato humano com o vírus – no fim do século XIX ou começo do XX, na África – até nossos dias. A obra é bem escrita pelo professor de filosofia.

A primeira vez em que li alguma coisa sobre a Aids foi em 1982. Então com 18 anos, eu era office-boy e, sem dinheiro para pagar uma escola de inglês, comprava revistas americanas e tentava traduzi-las em casa, com a ajuda de um dicionário. Era trabalhoso, muito trabalhoso, mas era o que eu podia fazer naqueles dias. Meus patrões me davam dinheiro para táxi, e eu fazia tudo a pé, correndo, para poder ficar com o dinheiro, já que o salário era muito pequeno. Comprei uma revista chamada “US” – que nem sei se ainda existe – e, nela, havia uma matéria cujo título nunca mais esqueci: “The gay plague” (“A peste gay”). Aquilo me impressionou bastante, tanto que ainda me lembro bem do teor da matéria e do seu tom alarmista. 

No ano seguinte, 1983, eu fui convocado pelo exército. Éramos garotos de 19 anos, sentíamos tesão por tudo o que se movesse e nossos superiores sabiam disso. Durante o período chamado de “internato”, tivemos uma palestra de um sargento enfermeiro sobre a tal misteriosa doença. Suas palavras estão claras para mim até hoje: “Prestem atenção, soldados: há uma doença aí que a gente não conhece, mas uma doença que está matando. Cuidado com essas meninas que ficam na estação de trem (Quitaúna) dando bola para vocês. Cuidado porque a coisa é séria!”. O ano passou, dei baixa e voltei à minha vida normal.

Veio o ano de 1984, e eu comecei efetivamente minha vida sexual. 1985 ficou marcado pela sucessão de casos de Aids no mundo – a coisa estava fora de controle. Rock Hudson foi à TV não apenas para confessar sua homossexualidade, mas também para dizer que estava contaminado e já com a doença manifestada. Sua aparência era assustadora. Veio a morrer em outubro do mesmo ano.

Em maio de 1986, conheci um rapaz, oito anos mais velho que eu. Rapidamente, percebemos que não haveria nada entre nós, mas nos tornamos amigos e foi ele quem me levou pela primeira vez a uma boate gay – o HS (“Homo Sapiens”), no mesmo local onde hoje funciona o “ABC Bailão”, na Marques de Itu, centro de São Paulo. Descobri ali um mundo totalmente novo pra mim com cores, música, alegria (aparente) e muitos, muitos homens disponíveis para um garoto como eu, então com 22 anos. Na minha sexta ida àquele lugar, conheci um homem, 19 anos mais velho, que viria a ser meu primeiro companheiro. Ficamos juntos por 8 anos!

Isso será tema para um outro texto, num outro momento. O fato relevante para agora é que, depois de quase um mês de namoro, ele se confessou apaixonado e me propôs que tivéssemos um relacionamento mais sério do que simplesmente nos vermos de vez em quando etc. Estávamos em seu apartamento quando ele me disse:

– Tenho duas coisas para lhe dizer. Preste atenção: estou apaixonado por você. Quer ficar comigo?

Respondi, feliz da vida, que sim, pois eu também estava apaixonado e bastante envolvido. E qual era a outra coisa que ele tinha pra me dizer que fosse tão ou mais importante que essa proposta?

– Há dois meses, fiz o teste de HIV. Deu positivo. Repeti o teste é deu de novo.

Eu respondi rapidamente: – E daí? Qual o problema? (Muito tempo depois, ele me confidenciou que esperava que eu nunca mais aparecesse depois de ouvir sobre o tal teste.)

Até então, não havíamos feito nada que pudesse comprometer minha saúde. O tempo, contudo, foi passando, e estávamos mais do que envolvidos um com o outro. Fui morar no apartamento dele e, tesão gritando, acabamos deixando o sexo seguro de lado – sexo seguro aqui entendido como masturbação e beijos. Houve um momento no qual não nos seguramos mais e durante meses fizemos tudo aquilo que, sabíamos, devíamos evitar a todo custo.

Ele era médico e entrou num conflito ético muito grande ao me expor ao vírus, embora eu houvesse consentido. Os dois estavam errados e isso é indiscutível! Resolvemos que eu também deveria fazer o teste  – no meu íntimo, eu achava perda de tempo, pois a contaminação, na minha cabeça, era inevitável. Eu já pensava como se estivesse com o vírus.

Para nossa surpresa, deu negativo. Conversamos com o médico e ele levantou a hipótese de eu ser imune ao vírus. Como tenho a minha fé, só posso agradecer a Deus por minha loucura não ter resultado no pior. Hoje, quando conto isso a alguém, faço questão de ressaltar que fui um idiota ao me expor daquela forma, sobretudo naquela época, anos 80, quando o diagnóstico era quase uma sentença de morte. Culpo-me muito por meu comportamento irresponsável , ainda que não tenha acontecido a contaminação.

Durante os anos em que ficamos juntos – até 1994 – meu companheiro perdeu cerca de 20 amigos para a Aids. As notícias eram muito ruins e ele parecia morrer um pouco cada vez que ia a um velório e a um enterro. Curiosamente, para nossa sorte, ele nunca desenvolveu a doença, vindo a falecer em 2000, mas de câncer no pulmão (segundo o médico que acompanhou seu caso, o câncer nada teve a ver com o vírus).

 Fomos a San Francisco, pela primeira vez, em 1987. O bairro da Castro – famosos por sua comunidade gay – estava triste. Eram centenas de homens morrendo, deixando parceiros, amigos e familiares. Senti uma atmosfera bastante tensa, embora eu tenha me apaixonado pela cidade desde então.

Nesse mesmo período, perdi aquele amigo que me levou pela primeira vez a uma boate. Ele ainda resistiu bastante do diagnóstico até sua morte, mas sofreu bastante também. Chegou a ser um ativista e um dos fundadores do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), existente até hoje. Esse é um amigo do qual nunca me esquecerei. Sinto sua falta até hoje.

Meu companheiro daqueles tempos sempre dizia que ele via a Aids como a tuberculose do século XX – uma doença da qual os doentes tinham que sentir vergonha, pois era vista como uma enfermidade que acometia pessoas cujo comportamento era reprovado pela sociedade. Uma doença com um estigma terrível – e o mundo não poupava julgamentos e condenações. O que também matava, na Aids, era o desprezo e a solidão impostos por familiares e “amigos”.

Em seu livro, Eduardo Jardim reproduz a declaração de Jonthan Mann, um dos pioneiros no combate à epidemia da doença. Segundo ele, “são três as etapas da epidemia. A primeira é o contágio pelo vírus, a segunda corresponde ao momento das manifestações clínicas e ao aparecimento das infecções oportunistas. A terceira resulta da discriminação dos atingidos pelo vírus e na reação preconceituosa da população”.

Em 1990, assisti no cinema a “Meu querido companheiro” (“Longtime Companion”), filme que, para mim, é o melhor já feito sobre o surgimento da doença nos Estados Unidos e a perplexidade que tomou conta das pessoas. O filme é denso, engraçado, comovente, melancólico e tocante. Hoje, claro , eu o tenho aqui e já o revi com amigos por diversas vezes. Quero, porém, ser justo: existem muitos filmes sérios e excelentes sobre a Aids. O mais famoso é “Philadelphia”, de 1993. Recomendo ao leitor que veja “E a vida continua” (“And the band played on), de 1993, e “The Normal Heart”, de 2014.

Eu teria assunto para escrever muito, muito mais… são muitas as perdas e muitas as lembranças.

Por tudo o que vi e vivi, sempre torço para que os jovens tomem cuidado. Acho que a Aids tem sido menosprezada pela moçada de hoje. Perdi dois amigos que tomavam o chamado “coquetel” e que enfartaram – isso há apenas dois anos. Não sei se houve alguma relação entre os medicamentos e as paradas cardíacas… acho que ainda há mistérios em torno dessa doença.

A única coisa boa de tudo isso foi que minha geração – com raríssimas exceções – começou a prestar atenção ao valor que a vida tem… e ao fato de ela ser extremamente frágil.

Bibliografia sugerida:

SONTAG, Susan. A Aids e suas metáforas, São Paulo, Ed. Schwarcz, 1988.

JARDIM, Eduardo. A doença e o tempo – a Aids, uma história de todos nós, Rio de Janeiro, Ed. Bazar do Tempo, 2018

Filmografia sugerida:

“E a vida continua” (And the band played on), EUA, 1993, dir. Roger Spotiswood; com Mathew Modine, Richard Gere, Anjelica Huston, Phil Collins.

“Meu querido companheiro” (Longtime companion), EUA, 1990, dir. Norman René; com Campbell Scott, Mary-Louise Parker, Dermot Wenning.

“The Normal Heart”, EUA, 2014, dir. Ryan Murphy; com Mark Ruffalo, Julia Roberts, Alfred Molina.  

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

1 Comments

  1. Daniel Nascimento disse:

    Reflexão interessante

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