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A CHUVA LEVARÁ

Quando um relacionamento termina, dificilmente os dois estão sintonizados para isso. O comum é que um ainda esteja mergulhado na relação, embora ela já tenha terminado para o outro. A gente precisa de um tempo (ou um tempão) pra seguir em frente…

 

A CHUVA LEVARÁ

 

Ontem, fim de tarde, eu estava dentro de um táxi. Trânsito caótico na cidade, céu plúmbeo anunciando a chuva de todos os dias do mês de fevereiro, e um motorista que não parava de falar de seus clientes e histórias de seu quotidiano. No rádio, uma dessas estações que mais parecem um “Hospício FM”, com um DJ que gritava mais do que falava, uma música insuportável e alta. A água não tardou a cair, pesada, forte, pingos grossos que não poupavam nada e ninguém. Tomado de impaciência, paguei o homem, vesti minha capa, certifiquei-me de que minha valise estava bem fechada e desci, na chuva mesmo, para caminhar um pouco nas ruas ensopadas de São Paulo.

Lembrei-me de quanto gostávamos de andar na chuva, só os dois, rindo e conversando. E você dizia que eu havia lhe ensinado a gostar do tempo assim, nublado, chuva gostosa que caía e nos deixava encharcados. Você adorava o verão, o sol, a praia lotada, a areia pegando fogo – de repente, eu lhe mostrei como apreciar, também, um dia diferente daquele que todos consideram “ideal”.

Ainda ontem, lembrei-me de quando nos conhecemos e de como você se apaixonou rapidamente, pegando a minha mão e dizendo que nunca mais a largaria. Ainda ontem, lembrei-me de como você costumava me abraçar no sofá para começarmos aquilo que, sabíamos, terminaria na cama ou debaixo do chuveiro. Lembrei-me de tanta coisa que uma tristeza, vinda não sei de onde, caminhou comigo demoradamente. Não importava por onde eu fosse, ela seguia comigo, ao meu lado, nunca me deixando esquecer de que, agora, eu andava sozinho.

Diminuí meus passos, fui devagar e não procurei abrigo nas marquises, como a maioria das pessoas. Não: eu precisava que a chuva me atingisse assim, por completo, acariciando meu corpo como você costumava fazer com suas mãos fortes. A água estava quente, a chuva vinha de algum lugar no céu onde havia aquecedor… sei lá! O fato é que me molhei muito e fui pensando em você e em suas promessas. Promessas!

Sabe que odeio promessas? Eu falei isso pra você quando nos conhecemos. Eu já havia, então, ouvido muitas em minha vida – e nenhuma delas havia se concretizado. Então, você respondeu que os casos de amor não precisavam ter sempre o mesmo fim. E eu acreditei nisso. Preciso me perdoar por tal ingenuidade.

Lembra-se de quando prometeu que seria fiel a mim, embora outros homens se jogassem em cima de você? Lembra-se de ter me dito que eu era o homem de sua vida, porque eu havia lhe mostrado tanta coisa que você não conhecia? Lembra-se de ter dito que nunca seria feliz com outro como você era comigo? Promessas… Acho que desci do táxi bem longe de casa para poder chorar no meio da chuva. Claro que foi isso! Andei devagar protegido pela capa que eu vestia, mas eu queria mesmo que fosse você ali, ao meu lado, seu braço peludo colado ao meu, como sempre fazíamos na rua, e você rindo. Você me prometeu que seu sorriso seria só meu… Lembra? Que coisa, não? Como é que alguém pode prometer alguma coisa assim e o outro acreditar? Será que não aprendi nada na vida ou será que a gente emburrece quando ama?

Um amigo meu diz que ninguém tem obrigação de corresponder à idealização que fazemos dessa pessoa – certíssimo! Nesses dois anos em que ficamos juntos, tive tempo suficiente para conhecer quem você realmente era – como também tive tempo de me apaixonar e de te amar. Azar: escolhi a segunda opção! (Nem posso dizer que você tenha mentido – só não foi capaz de corresponder a tudo o que eu mesmo criei e a tudo o que você prometeu…)

Ainda ontem, sob a mesma chuva, passei em frente a uma livraria e vi exposto na vitrine um livro lindo sobre Nova York… Lembra-se de nossos planos de juntar grana e passar um mês por lá? Lembra-se  de como queríamos conhecer a neve juntos? Ainda ontem me dei conta de que também esse projeto não realizamos.  Se um dia eu for, as fotos serão em sua homenagem – de uma paisagem com muita, muita neve! (Estou supondo que, nesses dois meses, você ainda não tenha viajado para lá com seu novo namorado.)

Sob guarda-chuvas de todas as cores, as pessoas passavam apressadas. Notei que alguns rapazes me deram bola,  mas não me voltei para conversar com nenhum deles… Segui em frente, não queria saber de ninguém. Não, eu não precisava apenas de sexo…

Cheguei em casa ensopado. Tirei a roupa molhada, tomei um banho gostoso, demorado e, pela janela do banheiro, fiquei olhando a chuva que não pararia (como não parou) tão cedo. Quase não dava pra ver os prédios do outro lado da rua, tal era o volume de água. Certamente, mais tarde, os telejornais teriam notícias tristes pra contar sobre esse temporal.

Enquanto eu me enxugava, uma tempestade de pensamentos, lembranças e promessas feitas veio à minha cabeça. Tentei me desviar delas, como a gente desvia de guarda-chuvas inconvenientes de gente egoísta.

De tudo o que passou pela minha cabeça, enquanto eu observava a chuva lá fora, só de uma coisa não consegui me livrar: as promessas que ouvi de você. Por um tempão, fiquei olhando a cidade lá embaixo e lembrando as promessas  que fazemos e ouvimos quando nos apaixonamos. Tudo é sincero – nada é concreto!

Ainda ontem, fiquei pensando na vida, fiquei pensando muito em você. Lembranças, planos, projetos, confissões, beijos e abraços… o sorriso no porta retrato, a camiseta esquecida na gaveta, um vidro de perfume no banheiro…

Tudo isso que, um dia, a chuva levará.

 

 

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Verônica Mucury disse:

    Amo seus textos , histórias, conversas, obrigada por mais uma linda história.

  2. Patricia disse:

    Professor Vítor, sempre o mestre da palavra certa na hora exata…. suas crônicas sempre me deixam com aquele gostinho de “quero ler mais!” E a pergunta… “como assim terminou?” Delicia de textos, bem escritos e aplicáveis a todos! Parabéns por mais uma crônica de sucesso, Professor!

  3. Baltasar Pereira disse:

    Tempo chuvoso parecendo mostrar as angústias dentro do peito de uma pessoa enamorada e com término de um relacionamento. Realmente, sempre é doloroso o término. Crônica que passou para mim a angústia que o personagem central sentia. A ligação da chuva e dos sentimentos do personagem é muito forte.🤗🤗

  4. Nunca podemos prometer aquilo não não conseguimos cumprir! Já me prometeram e não cumpriram. Professor sempre arrasando nos textos.

  5. Clarice keri disse:

    Nossa, adorei, história gostosa, da pra sentir a garoa e o romance no ar, crônica maravilhosa, vc têm o dom, obg

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