Já tive a oportunidade de escrever sobre a Disco Music neste blog. Volto ao tema porque acabei de assistir a um excelente documentário (em três partes) sobre o período. A produção é da BBC de Londres – “Disco: The Soundtrack of a Revolution”, de 2023, e conta com o depoimento de gente de peso que fez parte de tudo aquilo.
Como se sabe, a Disco nasce na esteira de Stonewall, o bar gay de Nova York, palco do choque entre a polícia e os gays que, cansados de apanhar, rebelaram-se e partiram para cima dos policiais, numa ação até então inédita. Isso em 1969. Nasce também por conta do baixo astral do começo dos anos de 1970, sobretudo pela recessão econômica e pela Guerra do Vietnã. O documentário é muito bom, sério e bastante informativo, principalmente para quem não esteja familiarizado com o assunto.
Quero destacar aqui um depoimento da cantora Candi Staton, cujo maior sucesso foi “Young Hearts Run Free”, de 1976. Ela afirma que, nos anos de 1960, as mulheres cantavam músicas que denotavam sua total dependência financeira e emocional dos homens; a eles, no entanto, era permitido cantar sobre quaisquer temas, normalmente de denominação na relação. Cantar sobre independência da mulher? Era difícil!
Mais adiante, a cantora narra uma história pessoal bem impactante, que teve uma relação direta com seu maior sucesso nas paradas Disco: “Eu estava vivendo um casamento bem tradicional, porém muito perigoso. Eu me apresentava em Las Vegas e abria os shows de Ray Charles. Na última noite, resolvi me sentar na plateia e assistir ao show dele. O meu marido estava procurando por mim, não me viu sentada na plateia e percorria os corredores como um desesperado. Quando me encontrou, me empurrou até o elevador, e, quando chagamos ao meu andar, acima do 20º, ele falou: ‘Vou matar você hoje. Vou fazer o seguinte: vou jogar você lá embaixo’. Ele me pegou nos braços e me segurou acima do parapeito da varanda. E eu pensei: ‘Esse homem vai mesmo me matar hoje. Como vou sair dessa?’ Aí, eu disse: ‘Aqui é Las Vegas. Esse hotel é da Máfia. Como é que você vai sair daqui com meu corpo estatelado no chão e meu nome na marquise? Você não vai conseguir sair da cidade’. Ele pensou, me colocou no chão e disse: ‘Vou fazer o seguinte: vou lhe dar um tiro’. Eu estava tão cansada, que me deitei na cama e disse: ‘Está bem. Atire em mim. Vou dormir e não vou sentir. Atire em mim’. Foi assim que nasceu ‘Young Hearts Run Free’ Essa música é para as mulheres, fala de sobrevivência”.
Com uma voz bastante serena para quem passou pelo que passou, ela continua: “Eu ia às discotecas e via que os gays sofriam a mesma dor – violência física e moral. Alguns perderam a vida. E eles dançavam a minha música triste. Incrível! Na década anterior, a gente não podia cantar esse tipo de música (de liberação feminina). Começamos a fazer isso nos anos de 1970”.
Como um crítico afirma no documentário, Candi Staton estava cantando e contando a própria história e já era uma vencedora simplesmente por poder fazer isso. E, pela força da própria voz, não se fazia de vítima. A canção, por sua vez, não envelheceu – basta que se preste atenção às estatísticas de violência contra a mulher hoje.
Quanto ao racismo, o documentário ressalta que a Disco permitiu que artistas negros se tornassem ídolos pop, não apenas um grupo à parte, figurando somente nas paradas de Rhythm & Blues, uma vez que, até então, a segregação musical era muito maior: negro tinha que cantar para negro!
Sobre cantores homossexuais, só mesmo naquele movimento grupos como Village People – com seus estereótipos gays – ou artistas como Sylvester poderiam ganhar os holofotes que ganharam.
O documentário da BBC, como eu disse, é interessantíssimo.
E a Disco foi muito mais rica do que muita gente tacanha e preconceituosa gosta de admitir.
(Abaixo, o link para quem quiser conhecer a letra traduzida de “Young Hearts Run Free” no Youtube).
4 Comments
Muito interessante pensar a ascendência da Disco a partir da sua relação quase involuntária com o movimento gay e a questão do racismo. Adorei a forma como vc narrou a experiência da Candi Statton 🙂 🙂
Professor, sou suspeito em falar da “Disco Music!” Essa música faz parte das minhas preferidas! E pensar que dançávamos sem entender a letra, e mesmo não sabendo, eu dançava e dançava, tínhamos 12 anos. Enquanto escrevo meus olhos enchem de lágrimas, é uma emoção violenta, um sentimento inexplicável. Como diz a letra: “quem quer viver em meio a problemas e conflitos?”
Olá Prof Vitor
Excelente crônica. Útil e oportuna.
O velho preconceito parece não ter fim. Muito bem abordada a desventura e a superação de Candi Staton.
Parabéns, belo trabalho!!!!!!
Extremamente atual.