“(…)Todos os dias é um vai-e-vem/A vida se repete na estação/
Tem gente que chega pra ficar/Tem gente que vai pra nunca mais (…)” –
“Encontros e Despedidas”, Milton Nascimento e Fernando Brant
Olho no verso da foto amarelada – 17 de julho de 1930! Isso foi há 70 anos! Fazia 70 anos que eu não mexia neste baú, talvez com medo das lembranças. Hoje, faz uma tarde idêntica àquela.
Era uma tarde de inverno. Muito frio, tempo nublado, vento gelado que cortava o rosto da gente, uma garoa fina, céu cinza, nada de sol. Na estação de trem, apenas sua mãe, seu pai, sua irmã, eu e o Barnabé, seu cachorro e fiel amigo. A velha composição partiria às 17h para chegar a São Paulo muitas horas depois. E você de paletó cinza, cabelo com brilhantina, barba feita, calça preta, sapatos engraxados, mala que a sua mãe segurava como se não quisesse que você partisse naquele trem.
Você, num misto de ansiedade, medo e impaciência, olhava a todo momento para os trilhos como a se perguntar cadê esse maldito trem que não chega! A promessa de um emprego em São Paulo, no escritório do tio rico, rua Quintino Bocaiúva. A pensão onde você moraria ficava em Santa Cecília, não muito longe da Estação da Luz.
Seu pai conversava comigo. Havia levantado a gola do casaco para se proteger do frio intenso naquela tarde de inverno. Sua irmã abraçada à sua mãe para se proteger da garoa, e eu, ali, meio estranho, naquela despedida de família, me sentindo um intruso. O Barnabé deitado, quieto, na plataforma. Só fui porque você insistiu, e sua mãe me disse que queria o melhor amigo do filho na estação para lhe dar uma força naquele momento importante da sua vida.
As coisas todas que passaram pela minha cabeça enquanto o trem não chegava. Nossas aulas no grupo escolar da D. Celina, o Barnabé esperando a gente na saída da aula; nossos passarinhos caçados com estilingue na mata, nossas tardes de sábado nas águas quentes do rio, o dominó nas noites de sábado e os passeios de bicicleta nas tardes de domingo. Tudo acabado. Tudo virando memória e saudade. Será que você lembraria de tudo isso na cidade grande? Ou ficaria tão ocupado e maravilhado com as novidades que nem se lembraria de quem ficava pra trás?
Lembro de termos saído da plataforma porque a chuva ficara mais forte; o vento, mais gelado. Sua mãe dizendo que sua irmã deveria ter ficado em casa e a menina respondendo que, de jeito nenhum, não deixaria de se despedir do irmão mais velho. Sua mãe, a certa altura, pegou no meu braço como a pedir conforto para a saudade que ela já sentia. Seu pai, fingindo preocupação com o trem, mantinha-se sério, nenhum sorriso atrás do bigode espesso que sempre cultivara.
Você evitava olhar pra mim. E eu compreendia sua tensão e nervosismo, mas ficava chateado de você não me dirigir a palavra, como se não quisesse minha presença naquele momento, naquela estaçãozinha tão pobre e tão simples de nossa cidadezinha serrana.
Lembro de seu pai transferindo o chapéu da cabeça dele para a sua com uma repreensão, pois homem de respeito tinha que usar chapéu, principalmente na cidade grande, onde ninguém o conhecia. Onde já se viu não usar chapéu!
Lembro também de quando o trem despontou no meio da névoa. Os únicos passageiros que esperavam eram você e duas mulheres que se mantiveram distantes de nós, na mesma plataforma. A névoa espessa caía sobre a cidade, e o trem que se aproximava ia anunciando nossa separação. Você não me olhava, não olhava para ninguém, só para o trem que cortava o nevoeiro como se fosse uma lâmina sobre trilhos.
Finalmente, ele parou na estaçãozinha de madeira, única e melhor ligação entre nossa cidade e o resto do país, já que as estradas de terra ficavam horríveis em dias de chuva. O trem, sempre o trem, levando e trazendo pessoas e notícias dos lugares que ainda não conhecíamos. Um fotógrafo profissional apareceu para registrar o momento. Você disse que não queria fotos, mas seu pai não concordou e falou que era importante, sim, guardar uma recordação daquele dia. Então, ficamos a postos para a fotografia. Você no meio deles, braços estendidos, mãos nos ombros de ambos, esboçando um sorriso que não lhe caiu mal. Todos sorriram, mas eram sorrisos meio tristes. Na frente de todos, no chão e de pé, sua mala marrom e o Barnabé.
O trem partiria em poucos minutos. Tempo suficiente para o beijo de sua mãe, o beijo de sua irmã e os conselhos de seu pai para que você fosse um homem correto no trabalho e com os familiares da Capital. Que viesse nos ver assim que pudesse – talvez nas férias, dali a um ano. E que não deixasse de escrever, sobretudo para sua mãe – pelo menos uma carta por mês.
Você consentia com a cabeça, dizia que sim, que faria tudo isso. Por fim, me deu um abraço apertado e me agradeceu por eu estar ali, naquele momento tão importante para você. Eu lhe desejei sucesso na nova vida e pedi que não nos esquecesse. Lembro de uma palavra sussurrada por você no meu ouvido – “nunca!”.
Lembro do trem partindo no meio da névoa, sumindo na bruma branca, levando você pra longe daquela cidadezinha tão insignificante. Voltei a pé com sua família e me despedi deles no portão da minha casa. Pedi que me dessem notícias suas quando as recebessem. Claro que sim, disse seu pai, os olhos um pouco úmidos. Sua mãe me agradeceu pela companhia e seguiu em frente, abraçada à sua irmã.
Entrei na casa de madeira em que eu morava com meus avós. Dei um beijo neles e fui para meu quarto. Deitei na minha cama e tentei ler um livro, no qual eu não conseguia me concentrar. Olhei pro teto um tempão, tentando entender o que estava acontecendo comigo. Que sentimentos eram aqueles que eu tinha desde a estação? O que eu estava experimentando naquele começo de noite fria, sozinho, na cama, em cima da colcha de retalhos que minha avó havia feito para mim? A garoa continuava a cair.
Os dias vieram e se foram. O tempo passou, eu me acostumei à sua ausência e ao seu silêncio. Esta cidadezinha cresceu o pouco que poderia crescer. Quase nada. As mesmas pessoas, as mesmas ruas e casas. Os dias pareciam ter mais de 24 horas.
Minha vida continuou como tinha de continuar. Fui em frente. Existência besta.
Houve uma vez em que encontrei seu pai no armazém da Dona Pierina. Ele me disse que você tinha escrito e que estava tudo bem em São Paulo. Só isso. Por algum tempo, esperei notícias suas – uma carta ou um simples cartão postal da cidade grande. Nada recebi. Por algum tempo, a saudade doeu, e seu desprezo também. Toda vez que eu via o Barnabé na rua, sozinho, doía mais.
Minha avó notou meu desconsolo. Um dia, me pegou chorando no quarto, quieto, sozinho, sem falar com ninguém. Eu sempre fui fechado, você sabe. Ela não disse nada, respeitou a minha dor.
Então, hoje, 70 anos depois, com esta foto em minhas mãos, sei que chorei mais do que um simples amigo choraria. Aquilo não era choro só de amizade.
E você nunca soube.
2 Comments
Professor Vitor, a música é maravilhosa, uma das que mais gosto! Bate uma saudade, lembro de tanta coisa quando a ouço! Um amor “escondido” e que permaneceu. Lembrei-me de tanta coisa que meus olhos encheram de lágrimas.
Linda Crônica, simplesmente bela.
Olá Prof Vitor
Excelente crônica. Ao som de “Emcontros e Despedidas” adquire um sentimento mais intenso.
Muito bem elaborada, densa e triste. Enfim, são os caminhos da vida que ocorrem ao acaso e nem sempre do modo que desejamos.
Parabéns pela crônica