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A REPÚBLICA

Estou no metrô, Linha Verde, às 15h de uma terça-feira. O vagão não está muito cheio, e eu o vejo entrar pela porta que fica próxima ao assento que ocupo. Será ele mesmo? Sim! É ele!

Éramos quatro estudantes na república. Todos rapazes na casa de seus 18 ou 19 anos, vindos de partes diferentes do estado para fazer faculdade. Eu, pra cursar engenharia civil; Mauro, pra fazer engenharia da computação; Sérgio estava no curso de Física; Ivã, no curso de Biologia. Fomos parar no mesmo apartamento de quatro quartos porque nossos pais viram anúncios de aluguel e correram para garantir nossa hospedagem na cidade, perto da faculdade. A gente se conheceu ali. E viramos amigos rapidamente.

Aquela vida de república estudantil. Quem viveu sabe! Algumas regras combinadas previamente – como respeitar a privacidade e os horários de cada um – e a cumplicidade que se estabelece quanto se dá a sorte de morar com caras legais.

Num instante, ficamos amigos. Éramos todos calouros e tínhamos quase o mesmo horário de aulas. Logo, a camaradagem se instalou e, por mais que fôssemos bons estudantes, cometíamos nossos pequenos pecados – como namoradas, transas ocasionais com meninas de outros cursos, álcool e música. Um não entrava no quarto do outro a não ser que fosse chamado e devidamente autorizado.

Eu era o que mais namorava naquela época. Era mulherengo mesmo! Toda semana, uma menina diferente no meu quarto e na minha cama de solteiro apertada. O Sérgio e o Mauro tinham as suas também, de modo que o entra-e-sai de garotas era intenso. Só o Ivã era mais comportado e estudioso – a gente não o via com ninguém. Nunca! Ele era divertido, mas um tanto solitário. Quando saíamos pra beber com as meninas e outros estudantes de outras repúblicas, ele preferia ficar quieto, dizia que ficaria estudando.

Foi o Mauro quem primeiro veio falar comigo que achava o Ivã meio estranho, sempre sozinho, sem namorada, devia ser virgem. Aquela conversa me deixou meio ressabiado e comecei a prestar atenção ao comportamento do nosso amigo. Realmente, ele nunca levara uma garota pra gente conhecer. Quanto o Mauro foi falar com o Sérgio, este disse pra gente deixar o cara em paz. Podia ser que tinha uma paixão secreta por alguma menina ou alguém que ele havia deixado na sua cidade de origem. Que deixássemos o cara na dele!

Nossa vida continuou. Aquele ano terminou, fizemos nossas provas, todos foram aprovados para o ano seguinte. Antes de dezembro, cada um foi para sua cidade. Passadas as festas e as férias, retornamos para o segundo ano. Nada mudou nos dois semestres seguintes. Continuamos com nossa rotina de aulas, estudos, provas, namoros, bebedeiras e farras. Ivã continuava sozinho, embora fosse muito próximo de nós.

Aquele ano também terminou e, no começo do nosso terceiro ano, matei uma última aula e voltei pra casa mais cedo. Quando entrei, ouvi vozes no quarto do Ivã e bati na porta dele, porque ninguém deveria estar no apartamento àquela hora. Ivã pediu que eu esperasse um pouco, que já abriria pra mim. Quando abriu, apresentou-me, muito sem jeito, para um colega de classe dele. Ivã disse que estavam estudando. Era um rapaz da nossa idade, mais ou menos, que também ficou bem sem graça ao me ver. Apertei a mão dele, mas fechei a cara e fui pro meu quarto.

À noite, não me aguentando, chamei o Sérgio e o Mauro pra conversar. Contei-lhes o ocorrido, falei o que eu achava e queria a opinião deles. Ivã trancado no quarto com outro cara, aproveitando o apartamento vazio, sem nenhum de nós por perto. Eu não tinha gostado daquilo e, se a coisa fosse como eu estava pensando que fosse, eu queria distância do Ivã. Ele não servia para morar com a gente! Ou ele saía, ou saía eu! Falei que só de pensar em ter convivido quase três anos com alguém daquele jeito me dava nojo. Lembro de ter usado o termo “veado”. O que eles achavam?

Sérgio disse era melhor não agir com raiva e com precipitação. Ivã era uma cara legal, honesto, de família boa. Era melhor conversar com ele antes. E seu não fosse nada do que eu estava imaginando? E seu eu estivesse enganado e sendo injusto? Era melhor conversar com ele antes, repetiu. Eu me opus e perguntei como era que a gente conversava com ele sobre um troço daquele.

Mauro, que já desconfiava de alguma coisa, ficou totalmente do meu lado, embora concordasse com o Sérgio que a gente devia levar em consideração que o Ivã era nosso amigo.

Já tomado pela ideia fixa e com raiva por ter sido enganado durante todo aquele tempo, vivendo com alguém que eu não conhecia direito, explodi e, mesmo em voz baixa, voltei ao meu ultimato: ou ele saía ou eu. Eu não ia continuar dividindo o teto com um cara assim. A reunião foi no meu quarto com a porta trancada. O que não percebemos era que o Ivã estava ouvindo tudo.

Na manhã seguinte, acordamos para ir à faculdade e achamos um bilhete na mesa da cozinha, onde sempre comíamos alguma coisa antes das aulas. No bilhete, Ivã agradecia por tudo, mas dizia que estava se mudando para outra república, “mais barata, mais perto da faculdade”. Seu quarto já estava todo limpo, ele levara suas coisas na madrugada e deixara a grana do mês junto com o bilhete, no qual também agradecia “por tudo nesses três anos”.

Apesar de a cidade não ser grande, nunca mais vimos o Ivã. Chegamos à conclusão de que ele pediu transferência para outra faculdade. Eram outros dias, sem a tecnologia de hoje, sem as tais redes sociais, e uma pessoa podia mesmo sumir quando queria.

O tempo passou, nós nos formamos e seguimos nossas vidas. O Sérgio, o Mauro e eu continuamos amigos e, uma vez por ano, nos encontramos para lembrar de coisas do passado – menos do episódio com o Ivã. Falamos de tudo, quase nunca do ocorrido com nosso amigo biólogo. Há sempre um silêncio entre nós, um silêncio que revela estupidez e constrangimento (mais ainda da minha parte) quanto ao Ivã. Com a maturidade, percebemos os nossos erros.   

Continuo olhando aquele homem bonito, grisalho, que entrou no mesmo vagão do metrô em que estou. Ele conversa animadamente com um moço muito bonito também, ambos sorriem, e noto que estão de mãos dadas. Nas mãos dos dois, alianças de casamento. Ivã não me nota, absorto que está na conversa com o outro. Penso em falar com ele, mas não tenho coragem. Sou um covarde e acho que ele é mais feliz do que eu.  

Vejo que eu tinha razão quanto à minha suposição sobre nosso amigo. Provavelmente, aquele rapaz que estava no quarto com ele era mesmo uma transa. Ivã estava mesmo aproveitando a ausência dos demais para namorar e transar em nossa república. Hoje, sei que ele tinha esse direito.

Antes que ele me veja, chego à minha estação e desço.

Então, eu estava certo sobre o Ivã… Mas isso não alivia minha culpa, nem justifica a estupidez e a intolerância com que tratei um amigo.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Pois é! Ivã foi cauteloso e elegante quando deixou a república – não julgueis para não ser julgado.

  2. Roberto disse:

    Tive a oportunidade de morar em república quando fiz faculdade em Botucatu. Às vezes brigamos com os colegas por falta de maturidade, mas temos que respeitar as diferenças. Parabéns pelo texto, Vitão! Abraço, meu amigo!

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Excelente crônica. Relato claro de uma época de arroubos de juventude. Época em que ainda não tínhamos percebido que a vida é uma sucessão de acasos e coincidências. Outros tempos.
      Parabéns

  3. Clarice keri disse:

    Ótimo texto, relatou bem como o preconceito pode acabar com uma amizade, adorei, obrigada.

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